sábado, 7 de maio de 2011

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COMO SE ENSINA A SER MÃE E PAI? NOTAS SOBRE O DIREITO DE FAMÍLIA E AS RELAÇÕES DE GÊNERO


Ao longo de minha trajetória acadêmica, passei a fazer relações entre o direito e a educação. Assim, entendo o direito como uma forma de síntese do que se produz dentro de nossa cultura sobre infância e família, um espaço que articula e conecta muitos discursos (da psicologia, da medicina, da moral cristã etc.) e forma um novo que legisla e regula a sociedade como um todo. Desse modo o discurso jurídico se torna locus privilegiado para se pensar na cultura contemporânea. 
Mas afinal, o que isso tudo tem a ver com a educação? Educação, neste contexto, extrapola as relações escolares de aprendizagens. Ao ampliar o conceito de educação, toma-se como processo educativo todas as instâncias e práticas que tornam um indivíduo sujeito de determinada cultura. Dessa forma, são entendidas como pedagógicas as artes, as políticas públicas, as mídias, os processos de socialização, as leis etc. (MEYER, 2003). Assim, pode-se dizer que ao regular e estabelecer leis sobre a família, o casamento e os/as filhos/as, o direito de família ensina formas de ser homem, mulher, marido, esposa, etc. O que pretendi durante essa pesquisa, foi olhar para o direito de família como quem lê um texto buscando problematizar e evidenciar que posições de sujeito e representações são produzidas sobre família e parentesco através de um olhar das relações de gênero e sexualidade. 
Para tanto, utilizei referenciais dos Estudos de Gênero e de Sexualidade Pós-estruturalistas para pensar como, dentro de determinada cultura, é possível produzir essas leis e não outras. Busco, a partir de uma análise de discurso, multiplicar os significados postos no direito de família, tentando articulá-los com o que se coloca na cultura de forma mais geral.  
Nessa direção, a cultura é entendida como o local em que se compartilham e se produzem significados. Constitui-se como um campo de luta e de conflitos pelo poder de significar sujeitos e objetos existentes (JOHNSON, 2004). A cultura é, então, lugar de aprendizagens sobre o ser homem, mulher, mãe, pai, jovem, velho… Desse modo, ao analisar uma produção cultural, a lei, é possível dizer que também ela está implicada com a produção de modos de ser homem, mulher, pai, mãe, filhos e filhas, marido e esposa. Desse modo, olhando para o subtítulo II – das relações de parentesco, busco mapear de que modos família e parentalidade são colocados nesta legislação e como essas representações estão atravessadas e imbricadas com produções de gênero.  Isso se torna relevante na medida em que alguns grupos dizem não se reconhecer dentro dessa  legislação e lutam politicamente pela sua inclusão na norma jurídica, já que ela delimita, de alguma forma, quem são os sujeitos de direito e os/as cidadãos/ãs em nossa cultura.  

O Direito de Família 

O Direito de Família constitui o Livro IV da Parte Especial do Código Civil, junto ao Direito das Obrigações, de Empresa, das Coisas e das Sucessões. O direito de família, na ótica de diversos comentadores do direito, busca regular as relações que se estabelecem a partir de vínculos afetivos. Assim, pode-se pensar no direito de família como lugar de normatização das relações interpessoais indicando formas adequadas, corretas e saudáveis de constituição dos vínculos socioafetivos. Neste trabalho, quero olhar apenas para o Subtítulo II Das Relações de Parentesco, procurando analisar de que modos se ensina a ser mãe e pai de determinados modos dentro dessa legislação. 
O código civil que abriga o Livro do Direito de Família que estou colocando em análise foi sancionado pelo presidente da República em 10 de janeiro de 2002, sob o número 10.406, entrando em vigor em 10 de janeiro de 2003. Segundo vários autores, o Código Civil anterior, de 1916, estava baseado no princípio da propriedade. Especialmente o Direito de Família deste primeiro código se colocava com ênfase no patrimônio e na sucessão, colocando a legitimidade da família como essencial para a sucessão de herança. Para Simone Ribeiro, “diante do tratamento constitucional [e do novo código civil], seus participantes [da família] devem-se mutuamente: respeito e fidelidade, assistência moral e material, competindo a ambos a guarda e o sustento dos filhos comuns” (2002, p.17). Segundo esta autora, isso seria uma inovação em nosso direito, já que até então se baseava no direito à propriedade e na sucessão de patrimônio.  
Essa noção da família como comunidade de afeto, parece ser o grande diferencial do atual código. Ao mesmo tempo, Paulo Lobo (2005) defende que se rompe com “as definições biológicas”, entretanto boa parte do código trata dos vínculos naturais em detrimento dos civis. 

A constituição da família 

Trabalharei aqui pensando na centralidade da infância, na consanguinidade e no amor como enunciados presentes nesse discurso. Família não é um conceito homogêneo e fixo, mas sim, uma construção cultural que significa, por meio da linguagem, o que se entende por família ao longo do tempo em determinados locais. Isso implica uma multiplicidade de entendimentos sobre o que é família e, também, uma multiplicidade de possibilidades de se relacionar com ela e dentro dela.  Segundo historiadores/as culturais, o entendimento de que a família é o lugar de socialização e educação das crianças é um evento bastante recente nas sociedades ocidentais. Segundo Donzelot (2004), foi apenas no século XVIII, quando a criança se tornou o centro e o fim último da vida familiar, que surgiram ensinamentos diretos sobre a relação e a constituição familiar. O discurso médico-higienista, aliado ao da assistência social, buscava ensinar aos ‘necessitados’ formas de adequar-se econômica e socialmente através da organização familiar, permitindo aos seus filhos e filhas melhores condições de vida no futuro. Essas  políticas de assistência e controle da vida são chamadas por Foucault de biopolíticas. É essa forma de poder que se alastra pelo corpo social que constitui as práticas de governamento. Pode-se dizer nessa direção que as leis são também uma prática de governamento, uma vez que elas buscam atingir a população como um todo nas questões principalmente ligadas à família e à natalidade. É nesse contexto histórico que surge uma ênfase na família nuclear, baseada no casal e sua prole, restringindo a participação da família extensa ou ampliada nas questões de educação, especialmente moral, e de cuidado das crianças.
Assim, consolidava-se uma noção de infância que a define como um período diferenciado do desenvolvimento humano que exige cuidados e educação. As crianças passam ser o que, de alguma forma, sacraliza a existência de uma família. Sendo a infância uma construção “cultural por excelência”, como destacou Bujes (2000), a constante presença de crianças vivendo, brincando e trabalhando na rua, no período e nas sociedades estudadas por Ariès, não necessariamente era tratada e significada como desatenção, descuido ou, em última análise, violação aos direitos das crianças, como acontece hoje em dia.  
 A ideia de uma união de esforços do estado, da família e da sociedade como responsáveis pelas crianças tem uma história recente no Brasil, culminando, em 1990, com o ECA que passa a garantir a visão destes indivíduos enquanto cidadãos e sujeitos de direito. Assim, foi se produzindo uma determinada verdade sobre a infância, fazendo com que as outras formas de viver essa parte da vida fossem consideradas inadequadas ou não-infâncias. Estas verdades e discursos vão se intensificando à medida em que outras ações e políticas vão sendo criadas para a população infantil. Pode-se dizer, então, que, construiu-se uma noção de que a infância pressupõe educação, convivência familiar e comunitária, cuidado e proteção (BRASIL, 1990). 
O sujeito infantil, proclamado pelos discursos jurídicos e psicológicos, está no centro das atenções de políticas públicas, programas de inclusão, serviços, enfim, no centro da sociedade, já que ele é de responsabilidade da família, do estado e da sociedade em geral, como nos diz a Constituição de 1988 e o ECA. É esse movimento de visibilizar ao máximo o sujeito infantil enquanto sujeito político, que venho chamando de politização da infância. 
Assim, colocando a infância no centro das políticas públicas e do atendimento às famílias pobres, entendo que vai se produzindo uma ampla rede de politização da infância, posicionando os seus problemas como prioritários nas metas de governo. Dessa forma, visibiliza-se também aqueles a quem se imputa a maior responsabilidade no gerenciamento da educação e do cuidado das crianças: a família. Pode-se dizer que o direito de família trata o sujeito infantil basicamente como filho e é a partir dessa posição de sujeito que quero discutir a noção de família. As crianças parecem dar sentido e concretizar o que é uma família, por exemplo, quando a Constituição Federal diz em seu artigo 226, parágrafo 4º, que família é toda comunidade de pais e filhos ou um dos pais e os filhos. Desse modo, pode-se inferir que um casal sem filhos não tem a mesma importância política e legal que casais com filhos. O direito de família, nessa direção, é algo que, além de produzir uma heterossexualidade compulsória, está regido, atualmente segundo seus interpretadores, a partir do princípio do amor. 
Amor aos filhos, amor aos pais, amor ao cônjuge. Esse sentimento, hoje tão propalado foi inventado e tanto mais vem sendo reiterado pela legislação. Ao regulamentar o ritual do casamento, por exemplo, condutas que procuram garantir a livre e espontânea vontade deste ato são exigidas para que se possa realizá-lo.  De algum modo, essa celebração do afeto e do amor constatada pelos interpretadores do direito na legislação acaba por regular as relações familiares, os sentimentos e afetos, algo de foro intimo e privado que termina jogado na esfera pública através das leis. Dessa forma, essa regulação é feita a partir de algo que se diz impossível mensurar, mas que parece possível de legislar: os sentimentos. Portanto, essa regulação, essa medida  é realizada através de atitudes que são qualificadas como de cuidado, carinho e, sobretudo de amor. 
Porém o cuidado – considerado representativo do amor – também é um conhecimento e, portanto, pode-se aprender a cuidar de inúmeras formas a cada tempo e contexto. Nessa direção, está legitimando-se uma dada forma de conhecimento que implica um determinado tipo de cuidado. No âmbito das políticas públicas, por exemplo, para garantir que de alguma forma esses cuidados sejam levados a cabo, programas como o Primeira Infância Melhor (PIM) – anlisado por Carin Klein (2006) – são criados para ensinar as mulheres-mães a cuidar de forma ‘adequada’ de seus filhos e filhas.  
Em minha dissertação de mestrado (FERNANDES, 2008), pude ver que a pobreza é uma parte desse contexto e ela limita algumas possibilidades, entre elas o tipo de cuidado e aquilo que seentende por cuidado nessa família. É como se a pobreza imprimisse uma “suposta imoralidade” às famílias, comprovada nesse caso pela saída das crianças para a rua. Essas formas alternativas de cuidado são aquelas que a cultura em que vivemos não reconhece diretamente como cuidado. No material empírico analisado, esses cuidados eram expressos algumas vezes como deixar o/a filho/a com uma tia, chamar o Conselho Tutelar para tentar conter a criança, colocar na rua para pedir e assim conseguir comprar comida, fraldas, roupas. Tais atitudes são em alguma medida representadas como erradas, negligentes, maus-tratos etc., e vão posicionando essas famílias e, em especial, as mulheres-mães, como não-mães, sem amor pelos filhos e sem o comportamento esperado pela sociedade que lhes faria ter ‘maior cuidado’.  
Cynthia Sarti (2002) afirma que o ECA “dessacraliza a família”, ao dizer que as crianças devem ser protegidas inclusive de seus familiares, se esse for o caso. Porém “esse recurso legal é frequentemente utilizado para estigmatizar as famílias pobres, definidas como desestruturadas, ‘incapazes de dar continência a seus filhos’” (SARTI, 2002, p.24s). Ao mesmo tempo, a família – mesmo colocada sob suspeita – ainda é considerada o melhor local para o desenvolvimento das crianças, sendo a destituição do poder familiar a última atitude a ser tomada pelos órgãos responsáveis, uma vez que a família, especialmente  a biológica, assume um lugar considerado insubstituível para a formação das crianças. Um exemplo deste efeito que ao mesmo tempo exalta e coloca sob suspeita a família é o artigo 1.616 do CC: 
A sentença que julgar procedente a ação de investigação produzirá os mesmos efeitos do reconhecimento; mas poderá ordenar que o filho se crie e eduque fora da companhia dos pais ou daquele que lhe contestou essa qualidade. 
Esse artigo determina que, caso a paternidade seja contestada, seu resultado terá os mesmo efeitos da ação de reconhecimento de filhos, ou seja, será repassado ao registro de nascimento. Contudo, a contestação da paternidade pode acarretar que aquele(a) que contestou a paternidade não tenham direito a convivência com a criança. Isso implica que a contestação de paternidade pode ter efeitos adversos caso não se confirme a suspeita, o fato de ter duvidado, ou de ter tentado ‘fugir’ da paternidade pode impor a pena de não conviver com o filho. Ao mesmo tempo, essa contestação, embora não esteja restrita ao pai, parece ser possível apenas a ele, uma vez que: Quando a maternidade constar do termo do nascimento do filho, a mãe só poderá contestá-la, provando a falsidade do termo, ou das declarações nele contidas. (Art. 1.608) Desse modo, coloca-se bastante claro que a maternidade é bem mais difícil de ser contestada do que a paternidade. Essa condição da maternidade está ligada a discursos mais antigos e que vem sendo reatualizados constantemente pela psicologia, pela genética, pelo senso comum que colocam a maternidade como um instinto, como algo natural e que não há contestações. Esse pressuposto parece contradizer também tudo o que vem sendo dito sobre os vínculos no Novo Direito de Família serem mais afetivos e sociais. Uma vez que a maternidade pode ser constatada através do registro de nascimento lavrado a partir do registro de nascido vivo fornecido na maternidade à parturiente, se coloca a relação de maternidade como origem biológica/genética, algo que não está assentado nos laços socioafetivos. Ora, se a maternidade é entendida como um amor natural, instintivo de uma mulher para com seus rebentos, se está naturalizando uma relação que se constitui no social: o amor e o cuidado para com as crianças. 
Essa naturalização do amor materno, de algum modo, acaba por condenar as mulheres que não o tem, ou não o querem ter como desnaturadas, negligentes, criminosas (já que se pode processar uma mãe ou um pai civilmente por negligência), desviantes. Através dos discursos que circulam neste contexto pode-se notar que há uma valorização dos laços consanguíneos. A consanguinidade é o que rege a organização das políticas públicas e das leis, especialmente no direito de família e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Na medida em que a legislação confere aos genitores plenos direitos e responsabilidades sobre sua prole, pode-se dizer que a consanguinidade confere legalidade a essas relações. 
A matriz biológica é reiterada e legitimada com essas atitudes a responsabilizar-se pelos seus filhos e filhas e está ancorada especialmente na figura da mulher-mãe, sendo de alguma forma concentrada nesse sujeito. Essa legitimação da consanguinidade, de algum modo provoca a confusão entre o direito à origem genetica e o estado de filiação. A origem genética, segundo Paulo Lobo (2004), é um direito da personalidade que todo individuo tem de conhecer sua origem genética, inclusive para fins de tratamentos de saúde e de bem estar psíquico, uma vez que se entende como necessário a todo o ser humano o conhecimento de suas origens. Já o estado de filiação, segundo o mesmo autor, está na área do direito civil e ligado fundamentalmente com a 
posse do estado de filho, ou seja, ser amado, cuidado e protegido moral, civil e socialmente por alguém que se considere pai ou mãe. Dessa forma, enquanto um está ancorado na biologia e na paternidade pode impor a pena de não conviver com o filho. Ao mesmo tempo, essa contestação, embora não esteja restrita ao pai, parece ser possível apenas a ele, uma vez que:  Quando a maternidade constar do termo do nascimento do filho, a mãe só poderá contestá-la, provando a falsidade do termo, ou das declarações nele contidas. (Art. 1.608) 
Desse modo, coloca-se bastante claro que a maternidade é bem mais difícil de ser contestada do que a paternidade. Essa condição da maternidade está ligada a discursos mais antigos e que vem sendo reatualizados constantemente pela psicologia, pela genética, pelo senso comum que colocam a maternidade como um instinto, como algo natural e que não há contestações. Esse pressuposto parece contradizer também tudo o que vem sendo dito sobre os vínculos no Novo Direito de Família serem mais afetivos e sociais. Uma vez que a maternidade pode ser constatada através do registro de nascimento lavrado a partir do registro de nascido vivo fornecido na maternidade à parturiente, se coloca a relação de maternidade como origem biológica/genética, algo que não está assentado nos laços socioafetivos. Ora, se a maternidade é entendida como um amor natural, instintivo de uma mulher para com seus rebentos, se está naturalizando uma relação que se constitui no social: o amor e o cuidado para com as crianças. 
Essa naturalização do amor materno, de algum modo, acaba por condenar as mulheres que não o tem, ou não o querem ter como desnaturadas, negligentes, criminosas (já que se pode processar uma mãe ou um pai civilmente por negligência), desviantes. 
Através dos discursos que circulam neste contexto pode-se notar que há uma valorização dos laços consanguíneos. A consanguinidade é o que rege a organização das políticas públicas e das leis, especialmente no direito de família e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Na medida em que a legislação confere aos genitores plenos direitos e responsabilidades sobre sua prole, pode-se dizer que a consanguinidade confere legalidade a essas relações. 
Dessa forma, enquanto um está ancorado na biologia e na consaguinidade, o outro se coloca dentro dos laços  afetivos e sociais. Contudo, o discurso legal hegemônico que outorga a família biológica como ‘o’ lugar das crianças está ligado a teorias psicológicas do desenvolvimento que acabam por embasar a formulação jurídica do bem-estar das crianças e adolescentes (KLEIN, 2003). Ao mesmo tempo, essa família biologicamente herdada tem obrigação e responsabilidade civil e penal (uma vez que o abandono ainda é crime) de querer e acolher as crianças que gera, cuidando delas de forma qualitativa e eficaz para que cresçam de forma saudável. 
Essa biologicidade das relações familiares está incorporada em nossa cultura como algo fundante e legitimador da família. Pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, todas as crianças e jovens precisam ter alguém que se responsabilize por elas e eles. É necessário que um sujeito adulto tome para si a responsabilidade de cuidar e educar esse sujeito infantil e jovem. Assim, entende-se culturalmente que essa responsabilidade é daquele e daquela que geraram essa criança, ou seja, dos pais biológicos. Com isso, confere-se especialmente aos sujeitos pai e mãe essa tarefa, já que, pelo registro de nascimento3, eles são colocados como os responsáveis por essa criança. O sangue é tomado como uma entidade que extrapola os limites da convivência e da ação humana.  
Ele se torna um ente quase ‘divino’ que liga as pessoas ‘naturalmente’ por compartilharem a mesma carga genética. Atualmente, os exames de DNA têm sido buscados como a verdade sobre as origens e sobre a filialidade e paternidade (FONSECA, 2004). Dessa forma, o DNA atua como forma de reafirmação da biologicidade da organização familiar. Ou seja, por mais que as políticas públicas tenham investido em definições de família mais amplas (BRASIL, 2006), a utilização de exames como o de DNA para definição de paternidade reforça os laços consanguíneos e biológicos como uma essência das organizações familiares. 
Alguns fechamentos 
Procurei, através deste artigo, indicar alguns dos modos como o direito de família ensina a ser e viver em família. Assim, uma dimensão central é a questão da infância como célebre e último objetivo da família. Para dar conta da educação e do cuidado das crianças outras dimensões como o amor e a consanguinidade se colocam como fundamentais. 
Ao mesmo tempo em que a nossa cultura começa a admitir múltiplas formas de viver o ser homem, o ser mulher, jovem e velho, a infância e os modos de lidar com ela parecem ainda estar intocados. Admite-se uma nova infância, mas que precisa de ainda mais cuidados, carinho, afeto. A família, guardiã primordial das crianças, permanece do mesmo modo fixada nas posições tradicionais de homem-pai e mulher-mãe, sendo ainda reforçada pela legislação, pelas teorias psicológicas e educacionais. 
Nessa direção, gênero é um organizador da cultura e da família, mobilizando e marcando símbolos e instituições como a família e o direito. Em muitos locais da cultura, reforçados por elementos da legislação, mesmo que haja pai e mãe, é a mulher-mãe que será chamada, acionada e legitimada a criar e educar os/as filhos/as do casal. Maria Simone Schwengber (2007) afirma que, desde a gravidez, a mulher é posicionada como quem gere e despende cuidados e carinho. Assim, as mulheres-mães são, de algum modo, ensinadas por muitas instâncias a se responsabilizar pelos/as seus/suas filhos/as, enquanto aos homens-pais é facultado o direito de contestar a paternidade e, ainda que a paternidade seja comprovada, pode-se ordenar que a criança não se crie e eduque junto a este sujeito, recaindo novamente à mulher-mãe a responsabilidade unilateral pela criação das crianças. 
Frente a isso, as relações entre homens e mulheres  nas posições de pais e mães se coloca desigual e diferenciada mesmo na legislação que se  considera igual e equitativa a todos(as). Questões como essas carecem ainda de ser debatidas e enfrentadas, especialmente em esferas tão consagradas como a família e o direito.

Por Letícia Prezzi Fernandes


Bibliografia 

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BUJES, Maria Isabel. O fio e a trama: as crianças nas malhas do poder. In: Educação e Realidade, v.25, n.1 (jan/jun) p.25-44. Porto Alegre: FACED/UFRGS, 2000. 
DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2001. 
FERNANDES, Letícia Prezzi.  Nas trilhas da família... Como é o que um serviço de educação social de rua ensina sobre relações familiares. UFRGS. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008. 
FONSECA, Claudia.  A certeza que pariu a dúvida: paternidade e DNA. In: Estudos Feministas, v.12, n.2, p.13-34. Florianópolis, 2004.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber, tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, edições Graal, 2005 (16ª edição). 
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987. 
JOHNSON, Richard. O que é, afinal, Estudos Culturais? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org). O que é, afinal, Estudos Culturais? Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p.7-132. 
KLEIN, Carin.  Educação e(m) saúde para uma “infância melhor”:  maternidades e paternidades que se configuram em biopolíticas de inclusão social. UFRGS. Proposta de Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006. 
________.  Um cartão [que] mudou nossa vida?: maternidades veiculadas e instituídas pelo Programa Nacional Bolsa-Escola. 2003. Dissertação (Mestrado em Educação) - FACED, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003. 
LOBO, Paulo. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. In: Revista CEJ, Brasília, n. 27, p. 47-56, out./dez. 2004. 
MEYER, Dagmar Estermann. Gênero e educação: teoria  e política. In: LOURO, Guacira L., NECKEL, Jane F. e GOELLNER, Silvana Vilodre.  Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. 
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SARTI, Cynthia. Famílias enredadas. In: ACOSTA, Ana Rojas; VITALE, Maria Amália (orgs.). Família: redes, laços e políticas públicas. São Paulo: Cortez, 2002. 
SCHWENGBER, Maria Simone. A produção da mãe leve, flexível, forte nas páginas da Pais & Filhos. In: Anais da 30ª Reunião Anual da Anped. Caxambu (MG), 2007. 





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