sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Uma análise de Geraldo Vandré

Adriana Tanese Nogueira

Sempre tive a convicção interna de que é preciso estar à altura do que somos. Quem já não se pegou tendo algumas idéias fantásticas? Ou sentindo ter que realizar uma missão muito maior do que si próprio?

Acho que algo assim aconteceu com Geraldo Vandré. Minha filha de 12 anos ouvindo outro dia, pela primeira vez, a música Caminhando e Cantando ficou profundamente emocionada. Não foram só as letras que lhe chamaram a atenção, mas também a voz de Geraldo Vandré, o tom, a alma que está presente na forma como ele canta. É profunda, é sentida, é tão sagaz e intensa que tem o efeito de um megafone gigantesco.

Caminhando e Cantando, um hino. A melhor música de 1968, digna das melhores produções musicais do ano mais emocionante e radical da história ocidental, quando se acreditava que se podia mudar o mundo. O ano em que nos países civilizados de primeiro mundo, jovens e intelectuais acordaram do longo sono da hierarquia social e das tradições conservadoras para respirar o ar fresco da vida nova e ousar querer mais, ousar mudar, ousar dizer NÃO.

Infelizmente, no nosso Brasil subdesenvolvido, 1968 foi o ano da catástrofe. Desde aquele ano o “não” foi erradicado da cultura brasileira. Já notaram como todos dizem “sim”? Se fazem o que prometem é outro assunto, se ligam, se mantêm compromissos, se comparecem no horário marcado, se realizam o que prometeram, são fieis à palavra dada - tudo isso são outros quinhentos. O importante é dizer “sim”, nunca entrar em atrito. A oposição é proibida (porque no imaginário significa morte, fim); a hipocrisia aceita (e todos vivemos no jeitinho brasileiro). Enquanto a ONU decretava 1968 como Ano Internacional dos Direitos Humanos, no Brasil começou a orgia de desrespeito aos direitos humanos e ao Humano em geral.

Em setembro de 1968, no III Festival Internacional da Canção, Vandré canta o Para não dizer que não falei das flores. Foi um sucesso imediato. Todos, de alguma forma, compreenderam o que significava, a letra penetrou rapidamente debaixo da pele como uma pomada regenerante. Logo em seguida, Vandré perdeu seu emprego e antes da emissão das novas Tábuas da Lei (o AI-5) da Toda-Poderosa Ditadura Militar, em Dezembro daquele mesmo ano, Geraldo Vandré já estava fora do pais. Por causa de um música.

Como muitos exiliados, ele não gostou de sua nova vida. Arrancado de sua patria para salvar-se, o cantor fraquejou e cedeu às drogas e à depressão. Foi sua primeira grande falha. Ele não soube pagar o preço pelo presente que doou ao Brasil: uma simples música. Mas uma Grande Música, o hino de uma geração, o sentido de uma luta, o sonho de um povo, de muitos povos. A verdade cantada em poesia de que todos somos iguais, “braços dados ou não”, de que há muitos soldados “perdidos com armas na mão”. E o militarismo não é uma barbarie destinada a acabar um dia? Na Itália, há muitos anos é dada a opção de fazer o serviço “civil” no lugar do serviço militar. Os homens novos não identificam a masculinidade com o uso da força, isso é coisa do passado.

É também uma verdade psicológica e sociológica de altissimo valor que “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Conhecimento que não se transforma em ação não serve para nada, é vazio e enganoso. Saber é fazer. Saber é ser; logo, é agir. E isso porque temos “os amores na mente” e a “história na mão”: é por amor que muda-se o mundo e as lições do passado devem ensinar alguma coisa. Povo sem passado é povo burro que patina no presente (e isso vale do ponto de vista psicológico também: é preciso comprender a própria história para mudá-la). Somente assim, “caminhando e cantando, e seguindo a canção” poderemos aprender e ensinar “uma nova lição”, criar um novo mundo.

É essa “nova lição” que o regime militar exorcizou perseguindo e depois “confundindo” a cabeça do criador dessas palavras. Convinha aos exímios generais uma mais primitiva divisão do conflito entre bons e maus, fardados e “terroristas”, protetores da pátria e “malucos assassinos”. Era mais digerível uma versão simplória da realidade, regada a muito ódio, exaltação e medo.

Caminhando e Cantando era mais poderosa do que bombas e ameaças. Por isso, quando seu incauto autor resolveu cometer o seu segundo erro e ceder à angústia da saudade, voltando para a pátria amada cedo demais (1973), ele foi “acolhido” pela gentil força armada que “cuidou” dele num agradável hospital psiquiátrico, onde Vandré permaneceu isolados dos outros pacientes. Eis então o que significa na truculenta língua do regime militar o projeto transformador contido em Caminhando e Cantando: uma loucura. Uma doença tão perigosa que deveria ser mantida separada dos outros malucos que ocupavam a simpática clínica para doentes mentais.

Refletimos. Desde quando as Forças Armadas "acolhem" os cidadãos nos aeroportos? As Forças Armadas acolhem generais, presidente, embaixadores e altos funcionários. Cidadãos são acolhidos em suas chegadas ao país por familiares, amantes, amigos e colegas. Forças Armadas "acolhem" cidadãos somente quando os prendem ou os sequestram. Como Vandré não era um alto oficial, e não havia matado ou roubado, ele deve ter sido sequestrado para ser "reprogramado".

É certo. Num regime militar onde a livre expressão é proibida, onde todas as fontes, oportunidades e instrumentos de reflexão crítica são proibidos, “as flores pelo chão” devem ser incineradas e sua existência negada.

Foi assim que o poeta, cuja Musa genial inspirou-lhe a grande canção de esperança, foi hospedado por quase dois meses numa clínica psiquiátrica para “rever” suas idéias. O que mais a Musa poderia sugerir ao poeta, justamente nos anos mais negros da história do Brasil? O regime militar preocupou-se, então, em “explicar” ao poeta com "métodos apropriados" que suas músicas afinal não passavam de lorotas tolas, que sendo ele um cantor de porte, não como o Caetano e o Gil que “fazem qualquer coisa”, não lhe cabia permanecer no mesmo campo musical.

Tiveram sucesso. Hoje, Geraldo Vandré só faz “música erudita”, aquela que poucos entendem (qual melhor jeito de mantê-lo longe do povo?). Ele inclusive não gosta da cultura de massa (nem eu gosto, mas ela virou o que virou porque foi expurgada anos atrás de todos os pensadores críticos!) e é por isso que não canta mais para o Brasil.

Não só, surpreendentemente, Vandré agora tem a Força Aérea Brasileira como seu xodô, se aloja com eles, carrega papel impresso da FAB, símbolos e tudo o mais. Como ocorreu tal mudança?

Ao assistir à entrevista da Globo pelos 75 anos de Vandré, a impressão que tive foi de um homem quebrado, mas "disfarçado". Ele não parece amargurado, arrependido, deprimido. Poderia sentir-se assim, tem motivos para isso, seria totalmente normal. Ele também não parece um homem que mudou de idéias, que deixou de acreditar em algo e passou a pensar diferente, nem que fosse de forma fanática. Qual é a dele, então?

Ele parece uma pessoa cuja estrutura mental foi embaralhada por um novo e diferente maço de cartas, que nada tem a ver com a identidade original. Imaginem jogar baralho e de repente aparece aqui e alí uma carta com outro desenho, outro significado e que pertence a outro tipo de jogo. Imaginem dois “jogos” convivendo na psicologia de Vandré aparentemente de forma “pacífica”, pois uma situação dessas deveria levar ao desequilíbrio mental. Mas o Vandré parece normal. É como se, de alguma forma, conseguiram “reprogramar” o cantor de modo a manter sua aparente sanidade mas atuando em "modo diferente”.

Celso Lungaretti sustenta a tese da lavagem cerebral, não em sentido amplo, mas estrito. Ela acontece quando se submete uma pessoa a uma condição de total dependência de seus carcereiros. Estes controlam tudo o que a pessoa faz, desde o que e quando ela come e vai ao banheiro, até o sono e todos seus movimentos. Dá para imaginar o que isso significa? Estar totalmente à mercê do inimigo cruel?

Após um tempo assim, por instinto de sobrevivência e busca sentido (para não ficar louco), a vítima passa do sentimento de pânico e abandono total àquele de buscar conivência com seus algozes. Se, além dos “cuidados materiais" pelos quais a vítima passa, são-lhe soministrados também “cuidados psicológicos”, tipo “ensinar-lhe” o que ela deve pensar e acreditar, temos um prato cheio para compreender a esquisita entrevista de Geraldo Vandré à Globo.

Além de lento, o homem não é explicitamente patético, com seria alguém que fracassou seu propósito de vida e choraminga; também não mudou de idéia, como disse, pois hoje, de alguma forma, ele até nega ter tido “idéias”; não está amargurado, como teria todo direito a estar. Ao contrário, aparenta uma estranha leveza e distância, mas também não está fazendo algo de concreto. Tudo é confuso e nublado. Algumas coisas ele “não lembra”, mas as letras de suas músicas ele lembra perfeitamente.

Talvez só lá encontraremos Geraldo Vandré, no fio da meada que a Musa lhe inspirou, mas que o homem não conseguiu aguentar. Aquele fio da meada de sanidade mental que os “preocupados cuidados militares” não conseguiram apagar - e nunca irão apagar da bagagem cultural do Brasil. Morre o homem consciente, mas não morre a música revolucionária, justamente porque "a vida não se resume em festivais".
 

Fonte: Psicologia Dialética
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Uraniano Mota: O suicídio de Vandré

Por Urariano Mota*


Ao ver a entrevista de Vandré fiquei horas, alguns dias ruminando. Na verdade, ainda me encontro assim. Talvez nem fosse a hora de regurgitar palavras, mas a urgência obriga.

Em lugar do complexo “metida tenho a mão na consciência, e não falo se não verdades que me ensinou a viva experiência”, dos versos lapidares de Camões, procuro um nível mais baixo, que ainda assim está acima da minha altura. Tenho que ser justo, sensato e solidário em um só movimento. Mas como e onde a justa medida? Enquanto escrevo ouço uma canção íntima, que ouvíamos na década de 70 como uma senha:

“Eu vou levando a minha vida enfim

Cantando e canto sim

E não cantava se não fosse assim

Levando pra quem me ouvir

Certezas e esperanças pra trocar

Por dores e tristezas que bem sei

Um dia ainda vão findar...”

E vêm outras vozes,cantando na gente, na mesma canção:

“Deixa que a tua certeza se faça do povo a canção

Pra que teu povo cantando teu canto ele não seja em vão”

Que revolução queríamos naqueles anos, quando ouvíamos a canção de Vandré? Que peitos puros guardávamos ainda não provados pela luta? A ruminação continua, mas é imperioso avançar.

Já antes da entrevista, na Globo News, eu esperava o tom sensacionalista, como é comum nos trabalhos de Geneton Moraes Neto. Aquilo anunciado

“Geraldo Vandré quebra o silêncio em entrevista exclusiva

O Dossiê Globo News exibe neste sábado (25) uma entrevista histórica. Depois de quatro décadas de isolamento, o cantor e compositor que se transformou em um dos maiores enigmas da MPB resolve finalmente quebrar o silêncio, em entrevista exclusiva à Globo News. Autor de clássicos como Disparada e Pra Não Dizer que Falei das Flores esta, transformada em hino de manifestações contra a ditadura militar - Geraldo Vandré deu uma entrevista ao repórter Geneton Moraes Neto no dia em que completava 75 anos de idade. Desde que voltou do exílio, no segundo semestre de 1973, ele não falava para a TV. Não perca o Dossiê Globo News, neste sábado (25), às 21h05”

Essas trombetas, eu sabia, não teriam um espetáculo conforme o anunciado. Mas estava escrito, não havia opção, tinha que ver Vandré. Resistia ainda uma esperança de que ele sobrevivesse à montagem e às perguntas desarrazoadas. E começa a entrevista, e vemos: um velho de boné, com a insígnia da FAB, cabisbaixo, com o pensamento cheio de interrupções. O diabo é que nesse pensamento falho, ainda assim, sobrevivia uma certa lógica, como naquele louco Hamlet. Havia, há nele uma certa memória, montada, espertamente montada, como toda memória,mas, no caso de Vandré, com os cortes cirúrgicos e precisos que jogam fora a violência do regime militar.

E ocorre então a primeira ressalva, ao entrevistador, que só percebemos depois que o programa se fecha. Ocorre com Geneton o que é comum em 99% dos repórteres em ação na imprensa do Brasil: eles não entendem nada vezes nada da ditadura. Não é que alguns, pela idade, não tenham passado por aqueles malditos tempos de Médici (por coincidência, o período da volta de Vandré ao Brasil). Alguns viveram, conheceram pessoas, mas a sua experiência é exterior aos perseguidos. Devo dizer, eles não comeram e beberam com e daqueles jovens entusiastas que viviam no limite, clandestinos, entre ruas escuras, promessas de barbárie e bares infectos. Daí que os jornalistas cometam os maiores erros. Eles não têm o conhecimento sofrido da dinâmica.

Mas pesquisar é bom, informar-se é melhor, aprender, pôr-se em posição humilde, atenta e curiosa com os que viveram poderia e pode ser um modo de driblar essa impossibilidade da experiência vivida. Mas não, na entrevista até parece que Vandré é autor de duas músicas, Disparada e Caminhando. Pela insistência do repórter nessas canções, até parece. Poderia ser dito, essas são as “obras-primas” de Vandré. No entanto, há um momento na entrevista em que Vandré refuga, como um cavalo refuga, a seu caráter de compositor engajado, antimilitar na ditadura. Se o entrevistador houvesse ido além das duas obras-primas, poderia ter lembrado uma canção do senhor de boné, que era direta como um soco:

“O terreiro lá de casa

Não se varre com vassoura,

Varre com ponta de sabre

E bala de metralhadora....”.

Mas isso fica oculto das pessoas que veem o compositor pela primeira vez. É possível que houvesse também uma pauta prévia, aquela que todo repórter hoje no Brasil tem antes da realidade mesma. A saber, no caso do velhinho: na pauta, havia que mostrar Vandré como um homem que sobreviveu à velha esquerda e hoje dá vivas aos militares. A pauta do escândalo. Nesse particular sentido, a entrevista foi um sucesso. Na verdade, ela nem precisava da presença física de Vandré, bastavam-lhe os elementos essenciais da caricatura: um velho, um boné e a logomarca da Força Aérea Brasileira. O que deveria ser uma revelação do que o regime de 64 fez com um compositor de gênio, transformou-se em uma exibição de paradoxos e ruínas.

Na verdade, Vandré já oferecera antes à imprensa as linhas mestras da sua derrocada. Antes até da sua canção de homenagem à FAB. No coletivo virtual “Os amigos de 68”, uma militante médica, a quem não pedi autorização para divulgar o nome, informou:

“...Foi em torno de 74, quando eu fazia residência no Pinel. Conheci Vandré quando ele foi internado na emergência psiquiátrica da Clínica de Botafogo. Motivo alegado: Vandré estaria ‘armado com uma faca’ e ameaçava matar a sua irmã. Só o vi dias mais tarde, quando tocava violão para os internos no pátio da Clínica. Aparentava ‘tranquilidade’, mas sua fisionomia era de dor. Ele era ouvido com atenção e certa admiração. Sabiam que se tratava de um compositor famoso. Não consigo me lembrar o que tocava. Fiquei muito emocionada e chocada com tudo aquilo. Era o resultado das muitas torturas que ele sofrera na repressão dos anos 60/70...”

Regurgito para encerrar: Hemingway em “O Velho e o Mar” dizia que é possível destruir-se um homem, mas nunca derrotá-lo. Na entrevista, o que se vê é um homem ainda em estado de terror, em plena democracia. Nela, ele nos lembra os elefantes amestrados, torturados, que levantam a pata para o público no circo. Por isso não sabemos ao fim se o gênio de Vandré foi destruído. Peguemos então um caminho de esperança: Vandré continua nas suas canções, ele não foi derrotado.


*jornalista e escritor

Fonte: Portal Vermelho
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Depois de anos de silêncio, Geraldo Vandré concede entrevista

A pergunta que todos gostariam de fazer é a mais simples possível: o que foi que aconteceu com Geraldo Vandré ?

Vandré : “Ficou fora dos acontecimentos (ri). Ficou fora dos acontecimentos. Acho melhor para ele. Tenho outras coisas para fazer. Estudei leis. Quando terminei meu curso de Direito aqui no Rio e fui me dedicar a uma carreira artística, já sabia que arte é cultura inútil. Mas hoje consegui ser mais inútil do que qualquer artista. Sou advogado num tempo sem lei. Quer coisa mais inútil do que isso ? Quando entrei na escola, para estudar, era a Universidade do Distrito Federal. Quando saí, era Universidade do Estado da Guanabara. Hoje, é Uerj, no Maracanã”.

Você se animaria a fazer uma temporada comercial,em teatros ?

Vandré : “Tenho uma prioridade: fazer a minha obra de língua espanhola. É uma obra popular. Além de tudo, o que quero fazer, antes de cantar canções populares no Brasil, é terminar uma série de estudos para piano, música erudita com vistas a composição de um poema sinfônico. Porque aí já é a subversão total. Não existe nada mais subversivo do que um subdesenvolvido erudito”.

O fato de a música “Caminhando” ter se tornado uma espécie de hino de protesto provoca o quê em você hoje: orgulho ou irritação ?

Vandré: “Estou tão distante de tudo. Mas não tenho o que corrigir em nada do que fiz. Tenho muito orgulho de tudo o que fiz. Protesto é coisa de quem não tem poder. Não faço canção de protesto. Fazia música brasileira. Canções brasileiras. A história de “protesto” tem muito a ver com a alienação denominatória, é o “protest song” norte-americano, a música country. Há algumas coincidências. Não concordo com a denominação “música de protesto”. Fiz música popular brasileira”.

Você teve uma divergência artística com os tropicalistas – entre eles, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Hoje, você ainda considera ruim a música que eles faziam na época ?

Vandré : “Com essa pergunta, eu me lembrei de uma reposta que o próprio Gil deu uma vez. Fiz uma pergunta a ele. Não me lembro qual foi. E ele disse: “Ah, faço qualquer coisa. Uma tem que dar certo”. Eu não faço qualquer coisa”.

Mas você mudou de opinião sobre os tropicalistas ou não?

Vandré: “Parece que eles continuam na mesma. É o que me parece. Eu estou distante de tudo – não só do Tropicalismo como de tudo praticamente que se faz do Brasil”.

Em que país vive Geraldo Vandré ?

Vandré: “Vive num Brasil que não está aqui. Geraldo Vandré vive no Brasil. Eu até me atreveria a dizer que quem não vive no Brasil é a maioria dos brasileiros. A quase totalidade dos brasileiros não vive mais no Brasil. Vive num amontoado”.

Como é este Brasil de Geraldo Vandré ?

Vandré : “É o antes – de quarenta anos atrás. O país que o Brasil era quando fiz música para o Brasil não era este país de hoje. Não existia este processo de massificação. Dentro da minha própria carreira – profissionalmente falando – houve uma mudança ali no Maracanãzinho. Ali, houve a passagem do que eu fazia para um público de um teatro de setecentas ou no máximo mil e duzentas pessoas para um ginásio com trinta mil pessoas. E a televisão direto no ar. Já foi a massificação”.



O Brasil de quarenta anos atrás era melhor do que o Brasil de hoje?

Vandré: “Eu fazia música para aquele país”.

E por que não fazer música para o Brasil de hoje?

Vandré: “Porque o país é outro. O que existe é cultura de massa. Não é cultura artística brasileira. Não há praticamente espaço para a cultura artística. Se você considerar os outros autores, eles fazem coisas de vez em quando. Não têm uma carreira como tinham antigamente – nem Chico Buarque nem Edu Lobo, ninguém. A carreira que eles têm é uma carreira hoje muito segmentada”.



 
Você se considera, então, uma espécie de exilado que vive dentro do Brasil?

Vandré: “Estou exilado até hoje. Ainda não voltei. Eu estou exilado e afastado das atividades que eu tinha até 1968 no Brasil. Eu me afastei. Não retornei”.

Por que é que você resolveu se afastar totalmente da carreira artística naquela época?

Vandré: “Naquela época, já era assim: já era como hoje. Quando voltei, o Brasil já estava num processo de massificação em que o público para quem eu tinha escrito e para quem eu tinha composto praticamente já não existia, aquela classe média de quatro anos e meio antes. Estava muito confuso tudo.Fui esperando, fui vendo outras coisas. Isso foi de mal a pior – cada vez mais. Para você ter uma ideia: quando terminei o curso de Direito no Rio e me mudei para São Paulo, em 1961, para fazer uma carreira artística, não existia bóia-fria em São Paulo. Hoje, São Paulo é a terra do bóia-fria: todo mundo amontodo nas cidades. Vão aos campos para plantar e para colher e depois voltam para a cidades. Quando fui para São Paulo, a cidade tinha quatro milhões de habitantes. Hoje, são dezesseis milhões de amontoados. É um genocídio. Tiraram todo mundo dos campos para produzir e exportar…”

A decisão de interromper a carreira,então, foi – de certa maneira – um protesto contra o que você via como “massificação” da sociedade brasileira?

Vandré: “Não. O que houve foi muito mais uma falta de motivo, uma falta de razão para cantar. Protesto,não: falta de razão, falta de porquê. Estou fazendo o que acho que devia fazer”.

O que é que chama a atenção do Geraldo Vandré no Brasil de hoje? Que manifestação artística desperta interesse?

Vandré: “A miséria aumentou. Se você pegar a letra de “Caminhando” – ” pelos campos, as fomes em grandes plantações/pelas ruas marchando indecisos cordões/ ainda fazem da flor seu mais forte refrão/ e acreditam nas flores vencendo o canhão” -, hoje é mais ainda. Hoje, as ruas estão muito mais cheias de indecisos cordões. O processo de massificação destruiu praticamente a urbe brasileira”.

Você se animaria a fazer uma canção como “Caminhando” hoje?

Vandré:”Não existe isso. A gente nunca faz uma canção como uma outra. Aquela é uma canção. Cada uma é uma.A gente faz independentemente de animação. Quando decide fazer, faz”.

Você diria que o Brasil é um país ingrato?

Vandré : “Não. De forma alguma. São coisas que ocorrem. Guerra é guerra.Não perdi (ri). Eu me lembrei agora de um poema muito bonito de Gonçalves Dias que aprendi com meu pai: “Não chores, meu filho, não chores/ Viver é lutar/ A vida,meu filho, é combate/é luta renhida/ que aos fracos abate e aos bravos só pode exaltar”.

Quando você se lembra hoje do Maracanãzinho inteiro cantando “Caminhando” que sentimento você tem?

Vandré: “Aquilo foi muito bonito, muito bonito. Pena que eu não posso ver o VT. Estão guardando o VT não sei para quê.Quero ver o VT. Lá na sua estação eles devem ter. Procure lá. Consegue o VT para ver!” ( olhando para a câmera).

Você tem saudade daquela época?

Vandré : “Saudades….Saudades…Um pouco. Mas também há tanta coisa para fazer que não dá muito tempo de sentir saudade”.

Você vive de quê hoje ? Você recebe direitos autorais?

Vandré: “Nunca dependi de música para viver. Sou servidor público. Hoje, estou aposentado como servidor público federal”.

Você deixou de receber direitos autorais?

Vandré: “Pagam o que querem. Não existe controle. Não existe critério. Se nós tivéssemos direito de autor, teríamos os direitos conexos, direitos de marcas, patentes, propriedade industrial. É um assunto complexo. Mas aí não seríamos subdesenvolvidos“.

Você foi o único grande nome daquela geração que não voltou aos palcos – entre eles, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque…

Vandré: “Eu não voltei. É uma boa pergunta: por que não voltei? Não mudou tudo? Mas será que mudou?As razões pelas quais me afastei continuam preponderantes no que que se apresenta como realidade brasileira”.

Se você fosse escrever um verbete numa enciclopédia sobre Geraldo Vandré qual seria a primeira frase?

Vandré: “Criminoso (ri)”.

Por quê?

Vandré : “O que você chama de governo ainda me tem como anistiado por haver cantado as canções que cantei. Fui demitido do serviço público por causa das canções. O que se apresenta como governo no Brasil até hoje cobra impostos sobre o “corpo de delito” que foram as canções que fiz. Deu para entender agora? “.

Você foi punido pelo governo da época, perdeu o emprego público…

Vandré: “Fui demitido. Depois, retornei. Briguei, briguei, briguei..”

Em algum momento, você foi considerado “criminoso”…

Vandré: “Fui demitido por causa da canção. E essa canção que foi mltivo de minha demissão até hoje é…Voltei por força de um despacho dado com fundamento na Lei de Anistia, como se eu fosse criminoso. Anistia é para criminoso – condenado por sentença transitada em julgado, se ele aceitar. Porque ele pode não aceitar. Aceitar a anistia significa aceitar-se criminoso, beneficiário de anistia”.

Você acha que a grande injustiça foi esta : em algum momento você ser considerado um criminoso ?

Vandré: “Injustiça não é a palavra…”

Você teria cometido um “delito de opinião” …

Vandré: “Não. Era subversão mesmo, sob certos aspectos, porque não havia nada mais para fazer naquele instante. Não me lembro. Mas as Forças Armadas, propriamente ditas, entenderam muito melhor do que a sociedade civil. Nunca tive nenhum problema com as Forças Armadas propriamente. Sempre houve uma consideração e respeito entre nós”.

Hoje, você nega que tenha sido em algum momento um antimilitarista nos anos sessenta?

Vandré: “Nunca fui antimilitarista. Nunca assumi tal posição. Fui lá e falei o que queria dizer, numa canção que foi dita e cantada no Brasil diante de todo mundo. A canção foi cantada para os soldados, também”.

O grande equívoco sobre Geraldo Vandré foi este : achar que você era antimilitarista ?

Vandré : “Não houve, na realidade, um grande equívoco. Houve uma grande manipulação porque, quanto mais proibido, mais sucesso fazia; mais se vendia; menos conta se prestava. É uma questão muito séria”.

Qual foi a última manifestação artística que despertou o interesse e a curiosidade de Geraldo Vandré no Brasil ?

Vandré: “Passei quatro anos e meio fora do Brasil. Quando voltei, havia uma coisa muito importante que era o Movimento Armorial. Havia o Quinteto Armorial e a Orquestra Armorial. A sonoridade era muito condensada. O resultado era importante. Para mim, foi a coisa mais importante que aconteceu nos últimos tempos. Não me lembro de outra coisa que tenha ido além daquilo”.

E da produção recente, alguma coisa chamou a atenção do Geraldo Vandré ?

Vandré: “Nada. Tiririca (ri). Dizem que vai ser o deputado mais votado de São Paulo. Está bom ?"

Você disse, numa discussão na época dos festivais: “A vida não se resume a festivais”. Hoje, tanto tempo depois dos festivais, qual é o principal interesse do Geraldo Vandré ?

Vandré : “São as outras coisas que não estão nos festivais. Minha vida funcional – de que cuidei até me aposentar; as minhas relações com a Força Aérea, o meu projeto de fazer estas gravações na América espanhola…Tenho muita coisa para fazer”.

Outro grande nome que se celebrizou como opositor do regime militar na música brasileira foi Chico Buarque de Holanda. Você acompanhou o que ele fez depois ?

Vandré: “Chico teve um caminho diferente do meu. Não chegou a parar. Produziu muito durante aquela época em que eu estava fora. Chico ficou aqui. Saiu e voltou, saiu e voltou. Passei quatro anos e meio fora. Quando voltei, fiz uma tentativa de apresentação num programa de televisão. Não vem ao caso qual, mas não gostei do que aconteceu: o jogo de pressões que se fez em volta. Recuei. Depois, passou-se um tempo. A própria Globo queria fazer um festival. Chegaram a me procurar. Não tive interesse em participar”.

O que é que a produção de Chico Buarque significa para você ?

Vandré: “Chico é uma pessoa muito talentosa, muito importante. Um grande artista”.

Você perdeu o contato com todos os seus companheiros de geração na música ?

Vandré: “Nunca fui muito enfronhado no meio artístico. Fazia minhas coisas. Voltava para minhas atividades extramusicais”.

É verdade que você ficou escondido na casa da família Guimarães Rosa antes de ir para o exílio ?

Vandré: “Eu saí de circulação. Depois que o tempo foi passando, as coisas vão ficando claras: as Forças Armadas propriamente ditas não tinham nada contra mim. Não tomaram nenhuma iniciativa contra mim. Quando fecharam o Congresso Nacional, no dia 13 de dezembro de 1968, eu estava indo para Brasília para fazer um espetáculo.Evidentemente, suspendemos o espetáculo. Vim de carro – guiando – até São Paulo. Eu estava à mão das Forças Armadas….Nunca deixei de estar. Mas claro que algo poderia acontecer: ao andar à toa pela rua, eu poderia de repente encontrar um “guardinha de trânsito” que quisesse fazer média. Há sempre alguém que quer tirar proveito de situações assim. Para evitar, saí de circulação. Durante um tempo, estive na casa de Dona Aracy (viúva de Guimarães Rosa – que tinha morrido meses antes). Fiquei lá porque, quando vinha para o Rio, como não tinha casa aqui, sempre ficava na casa de amigos e de pessoas conhecidas”.

Por que você tomou esta decisão tão drástica – de interromper uma carreira de tanto sucesso ?

Vandré: “Decidir sair do Brasil naquele ano de 1968. (N:Os mesmos agentes que prenderam Caetano Veloso e Gilberto em São Paulo,em dezembro de 1968, tentaram prender Geraldo Vandré. Mas, avisado por Dedé, à época mulher de Caetano Veloso, Geraldo Vandré conseguiu escapar a tempo) Eu tinha uma programação para fazer fora do Brasil. Tinha um contrato com a televisão Bavária,na Alemanha, para fazer um filme sobre Geraldo Vandré. Fui fazer. Passei um ano e meio pela Europa. Depois, voltei para o Chile – para onde eu tinha ido do Brasil. Havia muitos brasileiros lá ainda. De lá, fui para o Peru. Ganhamos um festival em Lima em 1972 com uma canção que era a única não cantada em espanhol. Era cantada em “brasileiro” mesmo. O Brasil não conhece a canção.Chama-se “Pátria Amada Idolatrada, Salve, Salve – Canção terceira”.

Você se lembra da letra ?

Vandré : “Eu me lembro. É uma canção que foi feita para ser cantada por um homem e uma mulher. Existe de caso pensado – coincidentemente – uma confusão de sentimentos entre a ideia da pátria e a ideia da mulher amada.O homem canta: “Se é pra dizer-te adeus/ pra não te ver jamais/Eu – que dos filhos teus fui te querer demais-/no verso que hoje chora para me fazer capaz da dor que me devora/quero dizer-te mais/ que além de adeus/ agora eu te prometo em paz levar comigo afora o amor demais”.

E a mulher, cuja imagem se confunde com a noção da pátria, responde:

“Amado meu sempre será quem me guardou no seu cantar/ quem me levou além do céu/além dos seus/e além do mais/ amado meu/ que além de mim se dá/não se perdeu nem se perderá”.

Os dois cantam juntos um para o outro. É um contraponto”.

Você foi constrangido a gravar, em 1973, um depoimento em que negava que fosse militante político. Qual foi o peso deste depoimento na decisão de Geraldo Vandré de interromper a carreira?

Vandré: “Nunca fui constrangido a declarar que não tive militância política. Nunca tive militância político-partidária. Nunca pertenci a nenhum partido. Nunca fui político profissional. Não fui obrigado a dizer que não era militante. Nunca fui militante político. Nesta contemporaneidade em que estamos, eu me lembrei de um professor de Filosofia que dizia: “O homem é um animal político”. Sou uma qualidade de animal político que não depende de eleição. Vamos estudar a diferença entre política e eleição ?”.

Que lembrança você guarda deste depoimento ? Você foi levado para uma sala do aeroporto de Brasília e gravou um depoimento em que – de certa maneira – renegava ….

Vandré (interrompendo) : “É um assunto que ficou muito confuso. Não me lembro exatamente. Gostaria de ver a declaração…”

Você gravou o depoimento quando voltou do Chile…

Vandré: “Gostaria de ver, porque houve montagens. Era gravação. O que foi para o ar não sei”

O depoimento criou espanto na época, porque – de certa maneira – era você negando a militância política…

Vandré: “Nunca fui militante. Se engajamento político é pertencer a um partido, nunca pertenci a nenhum. Nunca fui engajado politicamente”.

Você obrigado a gravar este depoimento ? Fazia parte do acordo para voltar para o Brasil ?

Vandré: “Queriam que eu fizesse uma declaração. Não me lembro o que foi que disse. Mas eu disse coisas que poderia dizer. O que eu disse era verdade. Não disse nada que não tenha querido dizer. A TV Globo deve ter isso. Procure lá…”

A gente procurou e não encontrou….

Vandré: “Pois é: somem com tudo. Que loucura essa…Por quê ? Veja se acha o vt do Maracanãzinho. É o que tem Tom Jobim. É o mesmo vt. A minha parte sumiu. Por quê ? Fizeram uma retrospectiva do Festival. Botaram o Festival no Maracanãzinho- Tom,Chico, todo mundo, Cynara e Cybele. Mas,na hora de botar o Geraldo Vandré, usaram um filme feito na Alemanha, em que eu estava de barba. Não é certo”…

Talvez tenham recolhido o filme…

Vandré: “Para mim, é muito difícil acreditar que a TV Globo tenha se desfeito do filme. Não acredito. Devem estar guardando muito bem guardado”

Só para esclarecer este episódio sobre o depoimento que você gravou quando voltou do exílio : que lembrança exatamente você tem ? Quem pediu a você para gravar este depoimento ?

Vandré: “Aquelas declarações foram feitas para uma pessoa que se me apresentava como da Polícia Federal. Fiz um depoimento aqui. Depois, disseram que eu tinha de ir para Brasília. Cheguei ao Brasil no dia 14 de julho. Dois meses depois, apareço como se estivesse chegando em Brasília. Aquilo foi uma manipulação. O depoimento foi gravado antes. Gravaram-me descendo do avião em Brasília. Tudo muito manipulado. É esta a história dos vts: normalmente, temos esta doença. Estou falando aqui. O que vai ser mostrado vai ser uma seleção que a estação vai fazer. Não vai ser o que estou dizendo. Isso é muito sério”.

Para encerrar o assunto: o depoimento teve um peso na decisão de interromper a carreira ? Você ficou incomodado com aquilo ?

Vandré: “Não. Eu estava chegando e vendo como estavam a coisas.Não tinha menor noção da realidade. Tive de passar por um processo de adaptação no retorno ao Brasil”.

O grande mistério que existe sobre Geraldo Vandré durante todas essas décadas é, afinal de contas, o que aconteceu com ele depois da volta do exílio: você foi maltratado fisicamente ?

Vandré: “Não.Não”

Se você tivesse a chance hoje de se dirigir a uma plateia de jovens num festival, o que é que você diria a eles ?

Vandré: “Vamos ter de dar um tempo aí, não é ?…” (rindo)

Um “tempo” de quantos anos ?

Vandré: “Não sei. Agora, vocês vão votar para presidente, deputado, senador. Estão ocupados com outras coisas. Estou por fora”.

Que papel você acha que vai caber a Geraldo Vandré na história da música popular brasileira moderna ?

Vandré: “Nunca fiz este tipo de avaliação”.

Que papel você espera ter ? Você se acha suficientemente reconhecido ?

Vandré: “Obtive o reconhecimento que procurei e quis”.

Você em algum momento se arrepende de ter interrompido a carreira ?

Vandré: “Não. Porque raramente me arrependo das coisas que faço. Calculo bem, reflito bem, meço bem : quando faço é para ficar feito mesmo. Não existe arrependimento não”.

Para efeito de registro histórico: você, primeiro, não se considera antimilitarista…

Vandré: “Não…”

Segundo: você não foi maltratado fisicamente durante o regime militar…

Vandré: “Não…”

Terceiro: você disse o que quis no depoimento que você foi forçado a gravar quando voltou do exílio…

Vandré: “E em quarto: há o Quarto Comando Aéreo Regional…Tenho uma canção para o “exército azul”, a Força Aérea…(ri e exibe o brasão da Aeronáutica, impresso numa espécie de cartão de visita que traz, no verso, a letra de “Fabiana“). A aviação é muito bonita. A loucura é a aviação. Porque a maior loucura do homem é voar. Conhece loucura maior do que esta ? Não existe”.

Como é que surgiu a fascinação de Geraldo Vandré pela aviação ?

Vandré: “Desde pequeno, desde criança”.

Você gostaria de ter sido aviador ?

Vandré: “É. Não fui aviador militar. Não sou piloto, mas – de certa forma – sou aviador, porque me ocupo de assuntos da aviação. Uma coisa é aviador, outra é piloto. Você pode ser piloto, co-piloto, rádio navegador, mecânico de bordo, médico aviador. Há vários caminhos – não necessariamente tem de ser piloto…”.

O fato de você ter composto uma música em homenagem à Força Aérea criou um certo espanto. Hoje, você se hospeda em hotéis da Aeronáutica, como este. Nós estamos num ambiente militar…

Vandré :”Relativamente, porque este é um instituto de direito privado…”

Houve alguma mudança na postura do Geraldo Vandré ou não em relação às Forças Armadas ?

Vandré : “O que houve foi o reconhecimento de uma parte da sociedade que nunca tinha tido oportunidade de saber realmente quais eram as minhas posições”.

Em que situação Geraldo Vandré voltaria a um palco hoje ?

Vandré:”Depende de onde. Tenho uma programação na qual investo meu tempo e minhas energias : gravar um disco no exterior, num país de língua espanhola. É minha prioridade. Depois, vou ver minha programação para o Brasil. Escrevi umas trinta canções originalmente em “americano de habla hispânica”. Quero gravar num país de música espanhola, com músicos de lá. Minha prioridade comercial é esta. Para o Brasil, por ora, o projeto é a canção da Força Aérea mesmo – e um projeto sinfônico. A canção se chama Fabiana porque nasceu na FAB – em sua honra e em seu louvor”.

Você, hoje, então prefere compor peças sinfônicas ?

Vandré: “Tenho estudado música. Compus uma série de estudos para piano – aproveitando da técnica de uma jovem pianista de São Paulo. Mas a música ganhou outras dimensões. Passou a ser física e matemática. Ritmos do coração. Fica mais complicado,mas, para mim, é música”.

Você tem planos de gravar a música que você fez em homenagem à FAB ?

Vandré: “Claro. Já fizemos uma apresentação numa festa da Força Aérea em torno das comemorações da Semana da Asa, em São Paulo, com um coral de trezentos infantes. Uma coisa muito bonita. Com o tempo, vamos ver quais são alternativas que se colocam”.

Você declarou algumas vezes : “Geraldo Vandré não existe mais….”

Vandré ( interrompendo) : “Não, não declarei. Eu disse que ele não canta no Brasil comercialmente. Apresentei uma canção para a Força Aérea do Brasil. Não canto comercialmente no Brasil porque os problemas todos que tive de enfrentar resultaram de especulações comerciais: vendas clandestinas, câmbio negro, tudo isso. Quanto mais se proibia,mais se vendia. A sociedade, às vezes, tem essa doença”.

Você canta “Disparada” hoje, em casa ?

Vandré : “Não. Faz tempo que não pego num violão. Tenho de voltar a estudar”.

Que instrumento, então, você toca ? Piano ?

Vandré :”Não. Não sou pianista. Toco de improviso alguma coisa”.

Pelo menos duas músicas que você compôs são conhecidíssimas até hoje: “Disparada” e “Caminhando”.

Vandré ( interrompendo) : “Pelo menos duas…”

Se você fosse escolher uma, que música você escolheria como típica da produção de Geraldo Vandré ?

Vandré: “Disparada” é mais brasileira, tem uma forma mais consequente com a tradição das formas da música popular : a moda de viola. “Caminhando” já é mais urbana. É uma crônica da realidade. É a primeira vez que fiz uma crônica. Deu no que deu. A realidade não estava muito querendo ser…”

Retratada…A obra-prima de Geraldo Vandré qual é ?

Vandré: “Todas são iguais. Para mim, são todas iguais. Isso de obra-prima é uma questão de seleção e de predileção do público, os meios de comunicação e os chamados formadores de opinião”.

Mas você deve ter uma predileção pessoal…

Vandré: “Não tenho. É tudo igual mesmo”.

As peças sinfônicas você compõe como ?

Vandré : “As melodias, algumas harmonias…Para escrever em notas convencionais, preciso da escrita de pessoas que estão muito mais afeitas a esta tarefa do que eu. Eu levaria anos para escrever uma partitura. Jamais escreveria como alguém que faz parte de uma orquestra, lê e escreve na hora, à primeira vista. Hoje,estou dedicado a preparar um poema sinfônico cuja abertura coralística será a Fabiana, a canção que fiz para a Força Aérea”.

Você hoje se animaria a fazer um espetáculo para o público brasileiro?

Vandré :”Não.Para o público brasileiro, só uma coisa muito especial”…

Em que situação você voltaria a se apresentar no Brasil ?

Vandré: “Chegamos a cogitar de fazer uma apresentação da Fabiana no Clube de Aeronáutica. É um dos projetos de que chegamos a nos ocupar. Mas até agora as coisas ficaram postergadas, porque o clube vai entrar em reforma. Vêm aí as Olimpíadas Militares. O clube vai ter de se adequar”.

Qual é a grande inspiração que você tem para compor essas peças sinfônicas ? O que é que motiva você a compor ?

Vandré: “Nunca dependi muito da palavra inspiração. Escolhia os temas. O fundamental para mim é a memória que tenho do que ouvia no cancioneiro popular, as músicas de desde a minha infância”.

O público brasileiro ainda vai ter chance de ver Geraldo Vandré cantando “Caminhando” e “Disparada” no palco ?

Vandré: “Isso é profecia. Não sou profeta”.

O que é que levou você a fazer uma música em homenagem à FAB, a Força Aérea Brasileira, você, que era tido nos anos sessenta como antimilitarista ?

Vandré: “Era tido. Por quem ? Isso deveria ser perguntado para os que a mim me tinham como antimilitarista.Não sou militarista. Mas também não sou anti. Todos os países soberanos do mundo têm suas forças armadas. O que é que devemos fazer com as nossas ? Entregá-las para outras pessoas ? Vamos fazer isso ? Acho que não!

Chamo de “Fabiana” porque nasceu na FAB. Costumamos dizer assim: uma servidora da FAB é “fabiana”. A letra diz : “Desde os tempos distantes de criança numa força,sem par, do pensamento teu sentido infinito e resultado do que sempre será meu sentimento/todo teu/todo amor e encantamento/vertente.resplendor e firmamento/ Como a flor do melhor entendimento/a certeza que nunca me faltou/na firmeza do teu querer bastante/seja perto ou distante é meu sustento/ De lamentos não vive o que é querente do teu ser no passado e no presente/Do futuro direi que sabem gentes de todos os rincões e continentes/que só tu saber do meu querer silente/porque só tu soubeste, enquanto infante, das luzes do luzir mais reluzente pertencer ao meu ser mais permanente”.

O refrão é, coincidentemente, um contraponto de “vem/vamos embora/ que esperar não é saber” : “Vive em tuas asas todo o meu viver/ meu sonhar marinho / todo amanhecer”.

Termina a entrevista. Já são quase sete da noite. O Grande Solitário da MPB caminha em direção à escadaria que dá acesso à ala de hóspedes do hotel que funciona no Clube da Aeronáutica. Parte sozinho. Vai em companhia do único habitante do Brasil que Geraldo Vandré criou para si: o próprio Geraldo Vandré.


Entrevista de Geraldo Vandré ao jornalista Geneton Moraes Neto, em 25/09/2010, publicada em seu blog no portal G1



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