quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Analisando razões para a legalização do aborto

Esses dias eu vi um link para este texto falando de "dez motivos para a legalização do aborto". O autor reuniu os argumentos que, penso, são os mais comumente utilizados para defender a legalização do aborto. Embora eu defenda sim a legalização do aborto dentro de certos parâmetros , acho que é produtivo e interessante atacar argumentos que defendem a mesma posição, até para encontrar os melhores argumentos. Afinal não é isso que se procura?

1) De 2002 a 2007, cerca de 1,2 milhão de mulheres procuraram o Serviço Único de Saúde no Brasil por conta de complicações em abortos mal realizados (fonte: SUS);

Essa afirmação não acrescenta nada à questão moral que é o aborto. Eu poderia encontrar algum dado que afirmasse que "de tal a tal, x milhões de pessoas procuraram o Serviço Único de Saúde no Brasil por conta de complicações em crimes mal realizados", algo assim. Se o aborto for de fato, em essência, imoral não é um dado como esse que o tornará moral. Pessoas todos os dias recorrem ao SUS por ferimentos em assaltos, por exemplo, e a imoralidade do assalto em si não é afetada pelo dano no assaltante. Mas evidente que o número diz algo, mas ele não mostra por si só que por ser frequente o aborto então deve ser legalizado.

2) Nesta mesma época, R$ 160 milhões foram gastos pelo SUS para acolher estas mulheres;

A resposta é semelhante a mesma da afirmação anterior. O que mais me aflige diante de um dado como esse é lembrar que apesar desse gasto significativo essas mulheres são, na maioria das vezes , mal atendidas e tratadas com displicência. Por exemplo, é corriqueiro no SUS que mulheres que são atendidas durante um aborto sejam tratadas com descaso, sem receber ao menos anestesia, e isso independente do aborto ter sido provocado ou acidental. Mais adiante neste blog tratarei do problema com dados precisos.

3) A maior parte das mulheres que sofrem complicações por abortamentos mal realizados são pobres e negras;

Sim, assim como as afirmações anteriores demonstram, o aborto é também um problema social. Mas isso não é um argumento moral, ou seja, esse dado não ajuda a mostrar que o aborto é ou não imoral.

4) Definir quando quer ter filhos/as é direito sexual e reprodutivo das mulheres;

Sim, com certeza. Mas disso não se segue que o feto também não tenha direito. Pois este é o ponto, definir quando começam os direitos do feto. O direito da mulher no assunto aborto termina quando começa o do feto. Por exemplo, dificilmente se encontrará alguém que defenda a legalização do aborto no oitavo mês, quando o bebê ainda não está suficientemente maduro para nascer mas a chance de sobrevivência fora do útero é alta, mesmo se defendendo o direito da mulher ao planejamento familiar. Parece que a viabilidade e a capacidade de sentir dor conferem ao feto algum direito, sendo assim pode haver em alguns casos um conflito de interesses.

5) Cientistas não concordam (e talvez jamais concordarão) sobre quando exatamente tem início a vida. A estrutura cerebral completa se dá apenas aos 3 meses de gravidez, o que é argumento para a regulamentação do aborto até este limite;

A discussão do aborto não é sobre o começo da vida. Não se está defendendo algo assim, a essência do problema não é o começo da vida, mas o começo da pessoa. Um parasita é uma vida, mas não se vê uma campanha a favor das lombrigas. Por outro lado é verdade que a concepção não é algo instantãneo, mas sim um processo que leva cerca de 24 horas.

O segundo ponto, por outro lado, é de fato um argumento muito bom. Parece que de algum modo para se possuir direitos é necessário uma estrutura, e no caso uma estrutura cerebral mínima para se compor uma pessoa. Estou usando o termo pessoa num sentido muito mais filósofico que jurídico. Sendo assim, depois que essa estrutura cerebral está pronta o feto passa a possuir propriedades que conferem certos direitos, e não se pode mais provocar o aborto. Nesse ponto pode-se perceber qual é a natureza da questão do aborto, porque ele parece ser defensável antes dos três meses, e porque não seria defensável depois.

6) De acordo com a legislação atual (de 1940), o abortamento é já é legal se a mulher tiver sido vítima de estupro ou se correr risco de vida. Na prática, porém, estas exceções não funcionam como deveriam;

Até aonde eu sei não é bem assim que a legislação é, mas isso é uma questão jurídica e não moral. A legalidade não diz se determinada ação é boa ou moral, mas sim se é permitida ou obrigatória. Mas deixando esse ponto de lado, supondo que a afirmação é verdadeira, essas exceções só mostram uma inconsintência. Não vou entrar no mérito do caso de risco de vida para a mãe, mas me incomoda em particular o caso do estupro. É um discurso contraditório defender o aborto no caso de estupro e nos outros casos condenar. É dizer que um feto gerado através de estupro tem menos valor que um gerado através de uma relação consensual, é dizer que se um feto é pessoa num caso no outro não é, ou tem menos valor, ou seja, é profundamente inconsistente

7) Convicções religiosas são legítimas e devem ser seguidas pelo fiel de cada credo. Se uma determinada religião não aceita uma prática qualquer da sociedade, está no seu direito de solicitar que seus seguidores não compactuem com esta prática. Mas o dogma não deve interferir na legislação ou na garantia dos direitos das outras pessoas;

Endosso completamente essa afirmação. A legalização do aborto é para se permití-lo, não para torná-lo obrigatório. É como a questão do casamento gay, se você não gosta, tem algo contra, não tenha um oras.

8) Você certamente conhece alguém muito próximo que já passou pela experiência do aborto. Com certeza alguém do seu ciclo de amizades ou da sua família. Muito possívelmente até você. E você não acha que essa pessoa tem que ir para a cadeia por conta disso;

Esse argumento é ruim, e se parece com os primeiros. Na verdade é pior, porque apela para um sentimento afetivo para com as mulheres mais próximas. Eu poderia ter um parente que é um político corrupto, e o meu sentimento por ele faria com que eu achasse que ele não deveria ir para a cadeia por causa disso. Quer dizer, o que o meu sentimento em relação a alguém próximo diz de fato acerca da questão do aborto? O aborto então seria parcial, para quem eu gosto não tem problemas , mas para mulheres que não conheço há um problema, como isso responde à questão?

9) Por incrível que pareça, camisinha também falha. Muito muito pouco, se bem utilizada. Mas falha.

Sim, não só a camisinha, mas todos os outros. Quem engravida acidentalmente não é, necessariamente, alguém alienado ou despreocupado em relação aos anticoncepcionais. Mas isso não é um bom argumento, por maior que seja o cuidado no planejamento familiar pode ser que aconteça uma gravidez indesejada, mas o fato dessa gravidez ser acidental não a torna, em essência, diferente da planejada. O resultado da concepção é um embrião seja na gravidez planejada, acidental, ou estupro. Se o embrião tem ou não direitos não se descobre verificando a origem da sua concepção, nem a intenção dos pais.

10) Quase um lembrete: ser a favor da legalização do aborto não quer dizer ser a favor do aborto. Quer dizer que você é a favor que as mulheres que precisem recorrer a este procedimento possam fazê-lo através do serviço público de saúde sem medo de represálias e sem correr risco de morte.

Concordo em grande parte. Porém, e aqui abro um parênteses, infelizmente acho que será necessário mais que a legalização do aborto para que mulheres que passam por este procedimento sejam atendidas com o cuidado e respeito necessário. E não falo de recursos financeiros, um problema sério é o estigma social do aborto. É o médico , ou enfermeira, que materializam na paciente o seu julgamento de valor acerca do aborto, e assim acontecem casos de mulheres abortando sem o mínimo de atendimento, sem algum anestésico por exemplo.
Mas é basicamente isso: ser a favor da legalização do aborto diz algo sobre o mundo em que você quer viver, e não sobre uma decisão pessoal que você quer tomar.
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Por Barbara Pádua
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Fonte: Blog Ética e prática

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