sábado, 11 de junho de 2011

Paternidade Sócio-afetiva: o Afeto faz apelo à Paternidade



INTRODUÇÃO

O presente artigo científico, sob ênfase do cenário atual no que concerne ao Direito de Família, observou que cada vez mais se torna exigível uma tutela jurídica mínima que respeite a liberdade de constituição, convivência e dissolução da relação denominada família.

A igualdade de direitos, mesmo reconhecendo-se as diferenças naturais e culturais de gênero; a igualdade entre irmãos, seja biológica, seja adotiva ou havidos fora do casamento, com respeito a seus direitos fundamentais; o sentimento de solidariedade recíproca, que não pode ser perturbado pelo prevalecimento de interesses patrimoniais, vem atingindo a repersonalização das relações familiarescomo direito da pessoa humana.

Por conseguinte, o presente ramo do Direito Civil tolera suas repercussões, já que quase toda a organização jurídica sobre a família compreende as questões do afeto e da sexualidade.

Além disso, está fazendo-nos compreender o verdadeiro sentido da paternidade e suas várias formas, até mesmo já refletidas em textos normativos como o Estatuto da Criança e do Adolescente. A engenharia genética desvenda, pela via dos exames em DNA, a paternidade biológica e crimes nunca antes desvendados, as ciências sociais e psicológicas, cooperando para a determinação de guarda de filhos, tutela e curatela.

Mas, naquilo que é foco do presente trabalho, é o afeto o mais novo elemento considerando e analisado na sua imperativa importância na seara familiar. E é sobre este enfoque que se debruça o artigo que se segue.

1. CONCEITO DE FAMÍLIA
De acordo com Caio Mário (2007; p. 19 e p.20), família em sentido genérico e biológico é o conjunto de pessoas que descendem de tronco ancestral comum; em senso estrito, a família se restringe ao grupo formado pelos pais e filhos; e em sentido universal é considerada a célula social por excelência.

No que concerne à família, Silvio Rodrigues (2004; p. 4 e p.5) num conceito mais amplo, diz ser a formação por todas aquelas pessoas ligadas por vínculo de sangue, ou seja, todas aquelas pessoas provindas de um tronco ancestral comum, o que inclui, dentro da órbita da família, todos os parentes consangüíneos. Num sentido mais estrito, constitui a família o conjunto de pessoas compreendido pelos pais e sua prole.

Já Maria Helena Diniz (2007; p. 9 e p. 10) discorre sobre família no sentido amplo como todos os indivíduos que estiverem ligados pelo vínculo da consangüinidade ou da afinidade, chegando a incluir estranhos. No sentido restrito é o conjunto de pessoas unidas pelos laços do matrimônio e da filiação, ou seja, unicamente os cônjuges e a prole.

Segundo Paulo Nader (2006; p.3), Família consiste em "uma instituição social, composta por mais de uma pessoa física, que se irmanam no propósito de desenvolver, entre si, a solidariedade nos planos assistencial e da convivência ou simplesmente descendem uma da outra ou de um tronco comum".

Sintetizando a conceituação desse instituto, Silvio Venosa (2005, p.18), assevera que a Família em um conceito amplo, "é o conjunto de pessoas unidas por vínculo jurídico de natureza familiar", em conceito restrito, "compreende somente o núcleo formado por pais e filhos que vivem sob o pátrio poder".

Washington de Barros Monteiro (2004; p.3) ainda menciona que, enquanto a família num sentido restrito, abrange tão somente o casal e a prole, num sentido mais largo, cinge a todas as pessoas ligadas pelo vínculo da consangüinidade, cujo alcance é mais dilatado, ou mais circunscrito.

Dessa forma, a partir do conceito, pode-se perceber que família é, unidade básica da sociedade formada por indivíduos com ancestrais em comum ou ligados por laçosafetivos. Podendo também ser considerada como, um conjunto invisível de exigências funcionais que organiza a interacção dos membros da mesma, considerando-a, igualmente, como um sistema, que opera através de padrões transacionais.

2. A QUESTÃO DO AFETO NO DESENVOLVIMENTO DAS INSTITUIÇÕES FAMILIARES
Na maioria das vezes, o novo se revela como incômodo ante o mistério do desconhecido, apresentando-se, assim, uma forte tendência à rejeição, pela suposta impossibilidade de segurança que ele nos traz. Desse modo, como bem nos relata Maria Berenice Dias (2005; p. 1), em seu artigo sobre A ética do afeto:"Toda mudança traz a sensação de afronta ao que é certo, havendo uma tendência de rejeitar o novo por considerá-lo uma quebra do que sempre foi tido como correto".

A superação de paradigma não é tarefa fácil; requer evolução de consciências, valores, costumes, adaptações pessoais, culturais e sociais. Por isso, a concepção de entidade familiar percorreu longos trajetos e turbulentas manifestações até chegarmos a nossa atual dimensão sobre a família. Todavia, muito ainda há a ser conquistado, principalmente no campo jurídico, e muito paradigmas hão de ser reformulados, a fim de atingirmos o que Netto Lôbo (2004; p. 2) chama de repersonalização das relações familiares como direito da pessoa humana.

  • 2.1 ORIGEM E EVOLUÇÃO CONCEITUAL DA FAMÍLIA
Registros históricos, monumentos literários, fragmentos jurídicos, comprovam acertadamente o fato de que a família ocidental viveu largo período sob a forma "patriarcal". Destarte as civilizações mediterrâneas a reconheceram. Dessa forma, anunciou a documentação bíblica.

Como fala Caio Mário (2007; p.25) em sua doutrina, que ressalta ainda hoje o tônus emocional com que Cícero alude à figura valetudinária de Appius Claudius, que dirige os seus com a plena autoridade de um patriarca autêntico, não obstante a idade avançada e a quase cegueira. Os princípios fixados através dos tempos, desde época anterior ao Código Decenviral até a codificação justinianéia do século VI, dão testemunho verdadeiro dessa tipicidade familiar.

Em Roma, a família era estabelecida sobre o princípio da autoridade e compreendia quantos a ela estavam submetidos. O pater era, ao mesmo tempo, chefe político, sacerdote e juiz. Liderava, oficiava o culto dos deuses domésticos e espalhava justiça. Exercia sobre os filhos direito de vida e de morte, podia impor-lhes pena corporal, vendê-los, tirar-lhes a vida. A mulher vivia in loco filiae, completamente dependente à autoridade marital, nunca contraindo autonomia. Somente o pateradquiria bens, exercendo o poder sobre o patrimônio familiar ao lado, e como conseqüência do poder sobre a pessoa dos filhos e do poder sobre a mulher. A família era estabelecida em desempenho do juízo religioso, e o poder do império romano surgiu dessa organização.

Todavia com o passar do tempo, esfriaram-se estes preceitos rigorosos, conhecendo-se o casamento sine manu; as necessidades militares instigaram a invenção do patrimônio independente para os filhos, instituídos pelos bens contraídos como soldado, pelos que auferiram no exercício de atividades intelectuais, artísticas ou funcionais e pelos que lhe surgiam por formas diversas desses.

Conforme Caio Mário (ibidem; p. 27), a partir do século IV com o Imperador Constantino, instala-se no Direito Romano o entendimento cristão da família, no qual a ansiedade de ordem moral prevalece, sob inspiração do espírito de caridade. Por outro lado, comina-se o direito da cidade com maior vigor, sobrepôs-se ao doméstico, e sacrificou em parte a autoridade do paterfamilias.

Maria Berenice Dias (ibidem; p. 1), nos mostra que, ao longo da história, a família gozou de um conceito sacralizado por ser considerada a base da sociedade. De início, as relações afetivas foram apreendidas pela religião, que as solenizou como união divina e abençoada pelos céus. O Estado não podendo ficar aquém dessa intervenção nas relações familiares, buscou estabelecer padrões de estrita moralidade e de conservação da ordem social, transformando a família numa instituição matrimonializada.

Assim, todos que fugissem desse padrão legal e ousasse comprometer a estabilidade das relações sociais, sofreriam sanções. Nega-se juridicidade a quem se rebela e afronta o normatizado. Explica a autora:

A tendência do legislador é de arvorar-se no papel de guardião dos bons costumes, buscando a preservação de uma moral conservadora. É o grande ditador que prescreve como as pessoas devem proceder, impondo condutas afinadas com o moralismo vigente. Limita-se a regulamentar os institutos sociais aceitáveis e, com isso, acaba refugiando-se em preconceitos. Qualquer agir que se distancie do parâmetro estabelecido é tido como inexistente por ausência de referendo legal (ibidem; p. 1).

Desse modo, acaba-se não só se negando direitos, como também deixando de reconhecer a existência dos fatos, sendo a desobediência condenada à invisibilidade. Diante dessa postura, o legislador equivoca-se, pois negar a existência de fatos e não lhe atribuir efeitos só estimula irresponsabilidade. Expõe DIAS (ibidem; p. 2), que "a aparente 'punição', além de não alcançar o intuito inibitório, não dispõe de qualquer conteúdo repressivo, transformando-se em fonte de injustificáveis e indevidos privilégios. Desse modo, a Justiça acaba sendo conivente com o infrator".

DIAS (2005; p. 1), todavia, relata-nos que, mesmo diante das sanções legais, um significativo movimento social promoveu profundos reflexos na formação da família. Afirma ela que a laicização do Estado revolucionou os costumes e especificamente o Direito de Família, visto que sobreveio o pluralismo das entidades familiares, escapando suas novas estruturas do convívio das normatizações existentes. Diz ela:

O distanciamento entre Estado e Igreja culminou na busca de referenciais outros para a mantença das estruturas convencionais. Sem o freio da religião, valores outros precisaram ser prestigiados, e a moral e a ética foram convocadas como formas de adequação do convívio social. Esses os paradigmas que começaram a ser invocados para tentar conter a evolução dos costumes. [...] A questão pós-moderna essencial passa a ser a ética. (ibidem; p. 2).

É a partir disto que vislumbramos uma gama de entidades familiares a desflorar no mundo das relações, pois como muito bem assinala Netto Lôbo (2004; p. 2) "A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado".

Netto Lôbo (2004 - A; p. 5) defende que a característica fundante da família atual é a afetividade. Diz ele que as Constituições liberais sempre atribuíram à família o papel de célula básica do Estado. Todavia, demonstra que as declarações de direito, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, em sinal dos tempos, preferiram não vinculá-la ao Estado, mas à sociedade, como reconhecimento da perda histórica e de sua função política. Afirma ele:

A função política na família patriarcal, cujos fortes traços marcaram a cena histórica brasileira, da Colônia às primeiras décadas deste Século (séc. XX, grifo nosso). Em obras clássicas, vários pensadores assinalaram este instigante traço de formação do homem brasileiro, ao demonstrar que a religião e o patrimônio doméstico se colocaram como irremovíveis obstáculos ao sentimento coletivo darepública. Por trás da família, estavam a religião e o patrimônio, em hostilidade permanente ao Estado, apenas tolerado como instrumento de interesses particulares. Em suma, o público era (e ainda é, infelizmente) pensado como projeção do espaço privado-familiar (ibidem; p. 5 e p. 6).

Todavia, hodiernamente, a família brasileira vem desmentir essa tradição centenária, visto que relativizou-se sua função procracional; desapareceram suas funções política, econômica e religiosa (para as quais era necessária a origem biológica) e ressurgiu a função que, certamente, esteve arraigada às suas origens mais remotas - a de comunhão de vida unida por desejos e laços afetivos.

Nessa dinâmica, Netto Lôbo (2004 - A; p.1) aponta que, a partir da década de sessenta, as relações familiares e de parentesco passaram por transformações profundas, logo observadas pela psicologia, psicanálise, antropologia, sociologia, demografia, ciência política e engenharia genética; provocando, assim, uma radical mudança de paradigmas. No entanto, o Direito de Família pouco mudou, mantendo relativa distância dessas mudanças, e preservando no paradigma familiar o modelo patriarcal.

Expõe ele que, na sociedade brasileira, dois fenômenos podem ser apontados como principais responsáveis para essa mudança de paradigmas, nas duas últimas décadas: a concentração urbana e emancipação feminina. Diz ainda que a concentração urbana impulsionou a mais devastadora implosão do modelo patriarcal da família, e contribuiu para a emancipação da mulher, tendo, a partir de então acesso progressivo à educação e ao mercado de trabalho.

Assim, diante das demandas surgidas, veio a Constituição de 1988 como epílogo da lenta evolução legal das relações familiares e de parentesco no Brasil, antes amparada, em parte, pelo Estatuto da Mulher Casada e a lei do Divórcio.

Diante de tudo isso, pode-se concluir que a família evoluiu e continua evoluindo sob a conquista do afeto. Este só sendo possível se manifestar com a eliminação do elemento despótico no seio familiar. Hoje não há mais espaço para a família patriarcal, com abuso de poder, hierarquia, autoritarismo e predomínio do interesse patrimonial. Na trajetória da história familiar, viajamos do poder absoluto do paterfamilias romano, que incluía o direito de vida e de morte sobre seus filhos, para o conceito atual de autoridade parental, que é mais dever do que poder diante da filiação.

Netto Lobo (2000; p.3 e p.4) assinala que o princípio da afetividade foi constitutivo para a evolução social da família. Fazendo uma análise do art. 226 e 227 da Constituição, ele sintetiza dizendo que:

Se todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem, é porque a Constituição afastou qualquer interesse ou valor que não seja o da comunhão de amor ou do interesse afetivo como fundamento da relação entre pai e filho. [...] Se a Constituição abandonou o casamento como único tipo de família juridicamente tutelada, é porque abdicou dos valores que justificavam a norma de exclusão, passando a privilegiar o fundamento comum a todas as entidades, ou seja, a afetividade, necessário para realização pessoal de seus integrantes. O advento do divórcio direto (ou a livre dissolução na união estável) demonstrou que apenas a afetividade, e não a lei mantém unidas essas entidades familiares. (2001; p.6)

3. FUNDAMENTOS JURÍDICO-CONSTITUCIONAIS DO PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE
O princípio da afetividade tem fundamento constitucional. Não é rogativa de princípio, nem episódio excepcionalmente sociológico ou psicológico. No que tange aos filhos, o progresso dos valores da civilização ocidental levou à progressiva superação dos fatores de discriminação, entre eles. A declaração da natureza da família como grupo social instituído fundamentalmente nos laços de afetividade, projetou-se no campo jurídico-constitucional.

Na Carta Magna é possível encontrar três fundamentos essenciais do princípio da afetividade, constitutivos dessa exasperada evolução social da família, máxime durante as últimas décadas do Século XX: todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227, § 6º); a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º) e; a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, § 4º).

A filiação biológica era claramente dividida entre filhos legítimos e ilegítimos, a evidenciar que a procedência genética nunca foi, rigorosamente, a essência das relações familiares. A Constituição não tutela apenas a família matrimonializada e não constitui mais distinção entre filhos biológicos e adotivos. As pessoas que se unem em comunhão de afeto, não podendo ou não querendo ter filhos, é família protegida pela Constituição.

A igualdade entre filhos biológicos e adotivos implodiu o fundamento da filiação na origem genética. A concepção de família, a partir de um único pai ou mãe e seus filhos, eleva-os a mesma dignidade da família matrimonializada. O que há de comum nessa concepção plural de família e filiação é a relação entre eles fundada no afeto.

4. FAMÍLIA SÓCIO-AFETIVA
Consolida-se a família sócio-afetiva em nossa Doutrina e Jurisprudência, como um novo elemento no Direito Brasileiro contemporâneo, transpondo os limites fixados pela Constituição Federal de 1988, porém incorporados dos seus princípios. Quando declarada a convivência familiar e comunitária, a não discriminação de filhos, a co-responsabilidade dos pais quanto ao exercício do poder familiar e o núcleo monoparental reconhecido como entidade familiar está concretizada a chamada família sócio-afetiva. Os vínculos de afeto se sobrepõem à verdade biológica, convocando assim, os pais a uma "paternidade responsável".

No Brasil, a afetividade invade a ciência jurídica transcendendo aos aspectos exclusivamente psicológico e sociológico. Assim, como o respeito e consideração mútuos (art. 1.566, V do Código Civil de 2002) e lealdade e respeito (art. 1724 do Código Civil de 2002), o afeto e tolerância hão de ser incorporados como valores jurídicos no âmbito das relações familiares.

Segundo Caio Mário (2007; p. 40), ocasiões peculiares devem ser assumidas no mundo jurídico como relações de afeto com força própria para uma definição jurídica: o "filho de criação", quando comprovado o "estado de filho afetivo" (posse de estado de filho), a adoção judicial, o reconhecimento voluntário ou judicial da paternidade ou maternidade e a conhecida "adoção à brasileira".

5.1 PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA
O sistema clássico de estabelecimento da filiação fundava-se na proteção da instituição matrimonializada e calcada, por isso, numa visão patriarcal e hierarquizada da família, não passando, muitas vezes, pelos muros da verdade jurídica, a busca da verdade biológica, nem muito menos a da verdade sócio-afetiva.

A superação desse sistema buscou considerar efetivamente a verdade da filiação, possibilitando investigar a verdadeira descendência genética. Mas, além disso, como diz Fachin (1996; p.65):

Expressivo movimento legislativo percebeu uma realidade marcante: a verdadeira paternidade não pode se circunscrever na busca de uma preciosa informação biológica; mais do que isso, exige uma concreta relação paterno-filial, pai e filho que se tratam como tal, donde emerge a verdade sócio-afetiva.

Netto Lôbo (2003; p. 2) afirma que, nos últimos anos, dois foram os marcos essenciais para solucionar o conflito entre filiação biológica e filiação não-biológica: a Constituição de 1988 e a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembléia da ONU em 20 de novembro de 1989, ganhando força de lei no Brasil através do Decreto Legislativo nº 28, de 24 de setembro de 1990, e o Decreto Executivo nº 99.710, de 21 de novembro de 1990. Diz o autor:

Da Constituição derivam o estado de filiação biológico e não-biológico e o direito de personalidade à origem genética, e da Convenção a solução do conflito pela aplicação do princípio do melhor interesse do filho, que significou verdadeiro giro de Copérnico, na medida em que a primazia do interesse dos pais foi transferida para o do filho. (idem; p. 2).

Rodrigo Pereira (2003; p. 4) informa que a Constituição de 1988 provocou uma mudança marcante no Direito de Família a partir de três eixos: a igualdade de homens e mulheres diante da lei; o reconhecimento de outras formas de família pelo Estado, além da constituída pelo casamento; e a alteração do sistema de filiação, que trouxe a igualdade dos filhos havidos dentro e fora do casamento, proibindo qualquer forma de discriminação entre eles (art. 226).

A mudança com relação à filiação veio corrigir as injustiças que os filhos havidos fora do casamento sofriam. Antes, eles não podiam ser registrados cm nome do pai, mesmo que este quisesse, tendo em vista o zelo da "moral e dos bons costumes", pois se considerava uma afronta à família. Assim, o filho existia no mundo real, mas não no mundo jurídico.

Aponta ainda Rodrigo Pereira (2003; p. 5) que a Lei nº 8.560, de 1992, também veio fazer uma intervenção pertinente com relação à filiação e à paternidade. Ela veio determinar ao Estado que promova investigação de paternidade de todos os filhos que não tiverem o nome do pai no seu registro de nascimento. Sabe-se que a evolução do conhecimento científico veio facilitar e muito essa averiguação, tendo em vista a precisão do exame de DNA para a determinação da paternidade biológica.

Todavia, infelizmente essa lei não produziu os efeitos esperados: talvez pelo excesso de intervenção do Estado na vida privada das pessoas, posto que sempre haverá algo no sujeito que escapará aos ditames legais. Entretanto, ressalta-se que apesar da lei não poder impor ao genitor que assuma o efetivo papel de pai - tendo em vista que essa função não se impõe, mas se constrói - ela ao menos determina a paternidade para fins de subsídio.

O citado autor continua informando que, no campo jurídico, o laço biológico, sempre poderá ser fonte de responsabilidade civil, especialmente para fins de alimentos e sucessão, demonstrando que na França, o Código Civil (art. 311-1) foi alterado para fazer uma distinção entre paternidade para fins de subsídio e paternidade enquanto função para aquele que detém a "posse de estado de pai". Percebe-se, então, que diante dos avanços das técnicas médicas e da engenharia genética, mostrou-se necessário repensar meticulosamente a família frente às implicações trazidas por essas demandas atuais.

É sabido que, normalmente, a paternidade de filho havido no casamento, funda-se em três pilares: o jurídico (o marido da mãe é por presunção pai do filho tido com esta mulher o qual está casado), o biológico (o marido da mãe é, por presunção, o autor genético da fecundação) e o sócio-afetivo (o marido da mãe trata-o como filho e é tratado por este como pai).

No entanto, a falta de coincidência desses vetores pode gerar complexidade. Percebemos isso quando questionamos a paternidade do filho originado pela inseminação artificial heteróloga, ou seja, aquela cujo sêmen é de um doador que não é o marido, ou no caso do filho oriundo da união estável entre um homem e uma mulher, estando esta ainda casada legalmente com o ex-marido. Será que o fator biológico poderá determinar a paternidade no primeiro caso; e o fator jurídico, sob a presunção pater is est, determinar no segundo?

Diante desses exemplos percebemos claramente a impossibilidade de se aplicar literalmente a presunção legal ou a biológica. A adoção e a inseminação artificial heteróloga vem comprovar que o fator biológico não determina a afetividade da paternidade. Da mesma forma, constatamos que a presunção pater is est não autoriza a determinação da paternidade ao ex-marido da mulher que há anos é separada de fato, e que já construiu outra vida conjugal ao lado de seu companheiro, e dessa união originou filhos. Antes, presumia-se pai biológico o marido da mãe, no qual o adágio pater is est mantinha amarrado o biológico ao institucional, tendo ainda como pressuposto a fidelidade da mulher. Hoje, presume-se pai o marido da mãe que age e se apresenta como pai, independente de ter sido o procriador ou não. Diante disso, constata-se que a paternidade nesses casos será determinada, predominantemente, pelo fator sócio-afetivo.

A relação paterno filial sócio-afetiva é aquela que se revela no transcurso da convivência; é uma conquista que ganha grandeza e se consubstancia nos detalhes. É fruto de um querer, onde o desejo de ser pai se constrói na via do querer ser filho. Assim, a verdade sócio-afetiva nem sempre é verdade desde logo, nem sempre se apresenta desde a concepção ou do nascimento, ela se constrói e refina-se no seio da vivência familiar (Fachin; 1996).

Netto Lôbo (2004; p. 6) cita que o Tribunal de Justiça do Paraná, homenageando a filiação sócio-afetiva, em promissora linha de tendência da jurisprudência brasileira, decidiu:

1. A ação de negatória de paternidade é imprescritível, na esteira do entendimento consagrado na Súmula nº 149/ STF, já que a demanda versa sobre o estado da pessoa, que é emanação do direito de personalidade. 2. No confronto entre a verdade biológica, atestada em exame de DNA, e a verdade sócio-afetiva, decorrente da denominada adoção à brasileira (isto é, da situação de um casal ter registrado, com outro nome, menor, como se deles filho fosse) e que perdura por quase quarenta anos, há de se prevalecer a solução que melhor tutele a dignidade da pessoa humana. 3. A paternidade sócio-afetiva, estando baseada na tendência de personificação do direito civil, vê a família como instrumento de realização do ser humano; aniquilar a pessoa do apelante, apagando-lhe todo o histórico de vida e condição social, em razão de aspectos formais inerentes à irregular adoção à brasileira, não tutelaria a dignidade humana, nem faria justiça ao caso concreto, mas, ao contrário, por critérios meramente formais, proteger-se-ia as artimanhas, os ilícitos e as negligências utilizadas em benefício do próprio apelado.

Fazendo uma análise nesse mesmo diapasão, Dias (2007; p. 1) comenta que a mudança de paradigmas da família acabou por refletir na identificação dos vínculos de parentalidade, surgindo, desse modo, novos conceitos e uma linguagem que melhor retrata a realidade atual: filiação social, filiação sócio-afetiva, posse do estado de filho.

Afirma ela que, todas essas expressões nada mais significam do que a consagração, também do campo da parentalidade, do mesmo elemento que passou a fazer parte do Direito de Família - o afeto. Assim, como aconteceu com a entidade familiar, a filiação passou a ser identificada pela presença de um vínculo afetivo paterno-filial. O Direito ampliou o conceito de paternidade, que passou a compreender o parentesco psicológico, que prevalece sobre a verdade biológica e a realidade legal. (idem; p. 4).

No direito brasileiro considera-se estado de filiação ope legis, com fulcro no art. 227 da Constituição Federal de 1988 e arts. 1.593, 1.596 e 1.597 do Código Civil:
  •  Filiação biológica em face de ambos os pais, havida de relação de casamento ou de união estável, ou em face do único pai ou mãe biológicos na família monoparental;
  •  Filiação não-biológica em face de ambos os pais, oriunda de adoção regular; ou em face do pai ou da mãe que adotou exclusivamente o filho;
  •  Filiação em face do pai que autorizou a inseminação artificial heteróloga.
Netto Lôbo (2003; p. 13) esclarece que nessas hipóteses a convivência familiar e a afetividade são presumidas. Nos últimos dois casos, os estados de filiação não-biológica são irreversíveis e invioláveis, não podendo ser questionado por investigação de maternidade ou paternidade, tendo como fundamento a origem biológica; somente podendo ser objeto de pretensão e ação para fins de tutela de direito da personalidade.

Isso se justifica porque se fosse possível a investigação de paternidade no caso da inseminação artificial heteróloga, a paternidade ficaria incerta, posto que o sigilo profissional médico e o anonimato do doador impossibilitaria o conhecimento do pai biológico. A intenção da lei foi justamente o contrário. Ela veio possibilitar a legitimidade desse estado de filiação e fortalecer fundamentalmente a natureza sócio-afetiva da paternidade e da filiação, e não a natureza biológica.

Ressalta-se que, no que concerne ao estado de filiação, tanto o mandamento constitucional quanto à Convenção Internacional dos Direitos da Criança (que passou a integrar o direito brasileiro desde 1990) priorizam os direitos da criança e do adolescente. Assim, o princípio do "interesse maior da criança" está previsto nos arts. 4º e 6º da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA):

Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, a profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e comunitária (grifo nosso).
Art. 6º. Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento (grifo nosso).

Percebe-se, então, que o filho saiu das margens para ocupar o centro dos interesses no seio familiar, tendo prioridade na satisfação de seus direitos. Valério Pocar e Paola Ronfani (apud Netto Lôbo, 2003; p. 8,) simbolizam muito bem essa transformação do papel do filho na família:

Em lugar da construção piramidal e hierárquica, na qual o menor ocupava a escala mais baixa, tem-se a imagem de círculo, em cujo centro foi colocado o filho, e cuja circunferência é desenhada pelas recíprocas relações com seus genitores, que giram em torno daquele centro. Nos anos mais recentes, parece que uma outra configuração de família relacional está se delineando, em forma estelar, que tem no centro o menor, sobre o qual convergem relações tanto do tipo biológico quanto do tipo social, com os seus dois genitores em conjunto ou separadamente, inclusive nas crises e separações conjugais.
Assim, diante de um conflito entre filiação biológica e sócio-afetiva, o princípio do interesse do filho é que norteará a decisão do julgador.

Foi em busca de um equilíbrio entre a verdade biológica da filiação com o sentido sócio-afetivo da paternidade, que o legislador valeu-se da noção de posse de estado. A posse de estado de filho não serve prioritariamente à verdade biológica, mas busca valorizar, acima de tudo, o elemento afetivo e sócio-lógico da filiação, posto que a sua ausência pode pôr em dúvida o vínculo da filiação. Assim, como bem traz Fachin parafraseando Vilela (1996; p. 37) a paternidade apresenta-se, então, "como aquela que, fruto do nascimento mais emocional e menos fisiológico, reside antes no serviço e amor que na procriação".

É esse som da vivência afetiva que devemos nos propor a afinar e aprimorar a cada dia no seio familiar, a fim de construirmos um concerto sintonizado com a energia do amor, do respeito e da responsabilidade paternal, para assim se alcançar o desenvolvimento da mais fina melodia filial.

5.2 A IMPORTÂNCIA DO PAI NA ESTRUTURAÇÃO DO SUJEITO: O AFETO FAZ APELO À PATERNIDADE

Busca-se expor a importância do pai na estruturação psíquica do filho, buscando demonstrar as conseqüências pessoais e sociais relacionadas à ausência paterna, resgatar a função paterna a fim de acatar o apelo do afeto, que se vê tão fragilizado e frígido nos vínculos paternos filiais na sociedade atual. Assim, perceberemos que não só os filhos, mas também os pais fazem apelo ao afeto, a fim de alcançarem sua homeostase emocional.

Estatística da ausência paterna.
Montgomery (sem ano) informa que hoje, no Brasil, a taxa de divórcio quadruplicou em relação à década de sessenta, sendo que, na classe social baixa, o número de crianças que vive sem os pais atinge mais de 40%. Fazendo uma análise estatística sobre a paternidade com base num estudo atual da National Fathrboard Iniciative, Lancaster, Pensilvânia, aponta ainda que, nos Estados Unidos, um estudo projetivo estima que 55 a 60% das crianças nascidas na década de 90 passaram boa parte de suas vidas distanciadas dos seus pais biológicos.

Em 1960 era de cinco milhões o número de crianças, vivendo só com a mãe; hoje, chega a oito milhões. Cerca de 40% dessas crianças que vivem só com a mãe, vêem seus pais apenas uma vez por ano; e mais de 50% nem sequer conhecem seus pais. Aproximadamente, 15% das mães divorciadas não valorizam o contato das crianças com seus pais.

Expõem-se, ainda, dados alarmantes, vinculando os dados à ausência paterna, são eles: 72% dos adolescentes assassinos cresceram sem os pais; 70% dos delinqüentes juvenis em reformatórios cresceram com um só progenitor ou sem família; 60% dos estupradores da América cresceram sem seus pais; as crianças sem a presença paterna têm duas vezes mais probabilidade de repetir o ano escolar; as crianças de comportamento violento nas escolas é onze vezes mais provável que haja ausência do pai; a taxa de suicídio na adolescência triplicou entre 1960 e 2002, sendo que em cada quatro, três ocorrem em lares onde o pai é ausente. Ele diz ainda que as crianças na ausência do pai estão mais propensas a risco de suicídio, doenças sexuais, drogas, alcoolismo gravidez, aborto, criminalidade e baixa performance acadêmica; bem como mais vulneráveis a acidentes, asma, dores e dificuldades na elaboração da fala (gagueira).

Em estudo realizado no Hospital Psiquiátrico de Nova Orleans constatou-se que cerca de 80% das crianças de pré-escola que lá eram admitidas como doentes psiquiátricos, vinham de lares sem pai.

Demonstra-se ainda que em cada seis crianças, uma apenas vê seu pai pelo menos uma vez por semana. Em dez anos de separação do casal, somente uma em dez tem contato com o pai.

20% das crianças que vivem com seus pais quando perguntando o nome de adultos que você admira e se espelha, responderam como sendo "seu pai". Esse número quando perguntando a criança que vive sem o pai subiu para 66%.

Ressalta-se, então, que esses dados virão fundamentar a análise da importância do pai na estruturação do sujeito, impulsionando uma reflexão séria a respeito da temática paterna como co-responsável no desenvolvimento físico, psíquico, social e emocional do filho. O chamamento a essa análise visa não só o resgate do afeto na relação paterno-filial, mas também sua responsabilização como defesa da dignidade da pessoa humana e da harmonia social.

O pai como representante da Lei e sua importância na estruturação do sujeito.
A intenção de trazer a contribuição do saber psicanalítico sobre essa abordagem é justamente ampliar a análise sobre a importância da paternidade, abrindo novos horizontes no campo do Direito. É preciso conhecer o papel do pai na estruturação psíquica do sujeito, e fazer o resgate dessa função na sociedade atual.

Regatar a paternidade significa, não só garantir um desenvolvimento digno para o filho, mas defender o direito do pai de gozar o seu papel de maneira mais plena, reestruturando o vínculo afetivo na relação paterno-filial.

Análise da paternidade frente às demandas atuais.
Hoje, os homens tendem a participar mais efetivamente na educação dos filhos, não se limitando apenas a ser o representante da Lei. Constata-se, então, que nas sociedades ocidentais, cresce o número de pais que educam os filhos sozinhos. Na França, em 1990, cerca de 223.500 crianças viviam só com o pai; já nos Estados Unidos, entre 1971 e 1981, aumentou em 100% o número de pais que convivem sozinho com os filhos. Também no Brasil revela-se essa tolerância, embora em menor proporção do que nesses países (Pereira; p.3).

Porém devemos atentar para o fato de que a queda do modelo patriarcal trouxe consigo a queda de uma estrutura familiar que estava aí há milênios. Na estrutura patriarcal os lugares de pai, mãe e filho eram claros e bem demarcados. Com o declínio dessa ideologia do patriarcalismo e com as transformações sociais iniciadas com a revolução feminista (a partir da redivisão sexual do trabalho) "os lugares estruturantes e fundantes dos sujeitos, enquanto função, ficaram alterados, gerando sérias conseqüências na formação das famílias atuais". (ibidem; p. 7).

Uma das conseqüências desse fenômeno atual é o redimensionamento do masculino e da função paterna nesse novo contexto. Temos, hoje, uma crise da paternidade diante do rompimento do modelo patriarcal e da redefinição da família moderna. Assim fala PEREIRA:

Sua função básica, estruturadora e estruturante do filho como sujeito, está passando por um momento histórico de transição de difícil compreensão, onde os varões não assumem ou reconhecem para si o direito/dever de participar da formação, convivência afetiva e desenvolvimento de seus filhos. [...] Enfim, a ausência do pai, e dessa imago paterna, em decorrência de um abandono material e/ou psíquico, tem gerado graves conseqüências na estruturação psíquica dos filhos e que repercute, obviamente, nas relações sociais. (idem; p. 7).

Assim, o desafio que se coloca para esse terceiro milênio é aprender a organizar a "polis", considerando que não é possível pensar o Estado sem a família, sendo esta seu núcleo básico. Da mesma forma não é possível reorganizar esse núcleo básico sem o lugar estruturante do Pai. Desse modo, "teremos que reaprender, então, diante das novas formas de família, e nesse novo contexto social, o que é um pai, pois já sabemos que a ausência dele pode ser desestruturante para o sujeito" (Pereira; p. 9).

Pereira (sem ano; p. 9) destaca um aspecto muito interessante ao falar da importância de um pai ausente se fazer presente no discurso da mãe. Ele tomando como exemplo o filme "Central do Brasil", relata que, apesar de Josué não ter conhecido pai, pois se mudou do Nordeste para o Rio de Janeiro com a mãe, quando ainda estava em seu ventre, esta sempre falava em seu pai, fazendo com que o filho crescesse admirando um pai que nem chegou a conhecer. Assim, "a mãe falava bem do pai, e introduzindo para o filho a imago paterna, fez presente um OUTRO, e através de seu desejo possibilitou que o filho se estruturasse psiquicamente" (ibidem, p. 09).

Mas como bem ressalta Pereira (sem ano; p. 9), apesar da imagem boa do pai ser estruturante para o sujeito, não há como viver só dessa imagem, visto que, para a construção do mundo real, também é preciso um pouco de carne; dessa forma, a presença viva e próxima do pai também se faz necessária.

CONCLUSÃO

Concluímos que, o desafio para a consagração do princípio da afetividade será converter a população infanto-juvenil em sujeitos de direito, retirando-a da qualidade de objeto passivo para a de titular de direitos juridicamente protegidos. Assim, diante de um conflito de princípios, o interesse superior da criança deverá ser tratado como uma "consideração primordial", destacando-se, dessa forma, que nem o interesse do Estado, nem o interesse dos pais podem ser considerados o único interesse relevante para satisfazer os direitos da criança.

Apesar de o abandono material ser danoso, ele não se equipara ao psíquico, visto que, no primeiro caso, o Estado tem meios legais de cobrar pensão alimentícia, podendo até mesmo o pai ser preso, caso não cumpra com a obrigação de alimentos. Já o abandono psíquico e afetivo mostra-se bem mais gravoso, pois representa a ausência do pai no exercício de suas funções paternas, como aquele que representa a lei, o limite, a segurança e proteção. Essa ausência paterna mostra-se, hoje, como um fenômeno social alarmante, não sendo descabida a constatação trazida pelos dados estatísticos ora apresentados.

A apologia da presença paterna mostra-se uma necessidade urgente para nosso mundo atual. Os saberes, as instituições, o Estado, as mães, a sociedade como um todo, devem se mobilizar para o alcance dessa conquista. Trazer a temática do afeto é também trazer à tona a importância da presença paterna como co-responsável na estruturação ou reelaboração emocional dos sujeitos envolvidos na trama familiar. Além disso, possibilita o sujeito fazer laço social, contribuindo para a construção de uma sociedade mais digna e humanizada.

                                                                                                                                               Rafaele Ferreira Rocha e Gleick Meira Oliveira



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Vol. VI - Direito de Família. 5ª ed. Editora Atlas, São Paulo, 2005.
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Paternidade socioafetiva


1)      INTRODUÇÃO
O Código Civil de 1916 surgiu numa época em que  a atividade econômica era preponderantemente rural e no núcleo familiar as pessoas trabalhavam para se sustentarem e preservarem tal instituição. Com isso, o homem assumia o lugar  de maior destaque dessa união familiar, sendo a  mulher renegada ao segundo plano, tendo a incumbência de cuidar da casa e dos filhos. No tocante a esse tipo de constituição familiar, o matrimônio era a chave para que se pudesse integrar de forma efetiva a sociedade e gozar dos direitos que constituíssem o ordenamento jurídico brasileiro.
Dessa forma, os filhos que fossem descendentes de um casal em matrimônio eram aceitos pela sociedade e se enquadravam no molde desejado pelas pessoas, sendo a eles atribuídos todos os direitos inerentes da filiação. No entanto, os filhos havidos por quem não vivesse em matrimônio já não eram considerados em igualdade aos anteriormente mencionados, uma vez que não advinham de um casal e família bem estruturados.
Essa, então, era a mentalidade que imperava à época do diploma civil de 1916.
Necessário se fazia, pois, que houvesse uma modificação desse pensamento, o que veio acontecendo através do desenvolvimento histórico e da evolução científica do homem, o que conduziu a uma profunda transformação da sociedade e, conseqüentemente, da forma com que eram encaradas as  relações travadas entre os indivíduos.
Tal ampliação de horizonte possibilitou a inserção de novos valores, menos rígidos e hipócritas, cultivando um campo fértil para a evolução de novas formas de relação familiares.
Assim, como o ordenamento jurídico deve estar atento para as evoluções sociais e dar relevância a elas, o arcabouço legal também sofreu transformações, a fim de sustentar e sistematizar a nova conjuntura social. De fato, com a Constituição Democrática de 1988, houve uma flexibilização das normas referentes, no caso, às entidades familiares, como por exemplo, a igualdade da condição de filhos, sejam legítimos, sejam adotivos. É o que diz o art. 22 § 6º da Constituição Federal:
“ Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
Dada a complexidade e a importância das modificações no âmbito familiar, ocorreram transformações dinâmicas e envolvendo situações, cada vez mais freqüentes, de filhos que, por inúmeros motivos, se afastavam de seus pais biológicos e passavam a integrar uma nova família. Como exemplo, têm-se as crianças e/ou adolescentes que acompanham suas mães quando estas se unem a um novo companheiro, o qual passará a fazer as vezes  do pai biológico ou do jurídico, abrindo caminho para uma nova forma de paternidade – a paternidade socioafetiva.
Ensina MARIA BERENICE DIAS:
” A mudança dos paradigmas da família reflete-se na identificação dos vínculos de parentalidade, levando ao surgimento de novos conceitos e de uma linguagem que melhor retrata a realidade atual: filiação social, filiação socioafetiva, posse do estado de filho.
Todas essas expressões nada mais significam do que a consagração, também no campo da parentalidade, do mesmo elemento que passou a fazer parte do Direito de Família. Tal como aconteceu com a entidade familiar, agora também a filiação passou a ser identificada pela presença de um vínculo afetivo paterno-filial. O Direito ampliou o conceito de paternidade, que passou a compreender o parentesco psicológico, que prevalece sobre a verdade biológica e a realidade legal. “
Nesse sentido, tomam relevância os casos em que um indivíduo assume, perante a sociedade, a figura do pai da criança, dando-lhe afeto, carinho e provendo suas necessidades, construindo, assim, uma situação que merece evidente destaque e reconhecimento, além da proteção jurídica conveniente.

2)      PATERNIDADE SOCIOAFETIVA
Era gritante, pois, o descompasso existente entre o Código Civil de 1916, calcado apenas na paternidade biológica, advinda do casamento, e os novos modelos de família que se apresentavam já há algum tempo, quais sejam, a união estável e as entidades monoparentais, reconhecidas, também, pela Constituição Federal de 1988, no art. 226 § 3º e § 4º:
“ §3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento;
§ 4º -Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.
Dessa forma, revela-se como preponderante, a partir desse novo paradigma que se manifesta, avaliar o aspecto afetivo, a amizade, o amor, o companheirismo e o apoio, a fim de estabelecer quem, na verdade assume a função paterna dentro do lar. Apura-se, com isso, que o pai é aquele que, mesmo  sabendo não ser seu aquele filho,  dispende em seu favor atitudes de real afeto e o acompanha ao longo de sua vida.
O Código Civil de 2002, cumprindo a expectativa de que disciplinasse acerca das novas situações que vinham surgindo, trouxe em seu art. 1593 a possibilidade de haver reconhecida a paternidade socioafetiva.
O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consagüinidade ou outra origem”.
Assim, a doutrina se coloca no sentido de que, quando o dispositivo se refere à “outra origem”, o legislador quis significar que essa seria a origem socioafetiva do parentesco, ou seja, aquele guiado pelo carinho, respeito, afeição e dedicação, mesmo que a relação existente entre seus sujeitos não advenha do parentesco biológico, o qual era tido como o único que poderia gerar efeitos jurídicos e sociais.
Ressalta-se que, em sede de paternidade, consideram-se três tipos de vínculo: o jurídico, o biológico e o socioafetivo. Assim, a verdade biológica vem cedendo, cada vez mais, espaço para a verdade socioafetiva, erigida com bases nas situações de afeto mútuo entre pai e filho.
Vale informar o que ensina MARIA CRISTINA DE ALMEIDA:
“O novo posicionamento acerca da verdadeira paternidade não despreza o liame biológico da relação paterno-filial, mas dá notícia do incremento da paternidade sócioafetiva, da qual surge um novo personagem a desempenhar o importante papel de pai: o pai social, que é o pai de afeto, aquele que constrói uma relação com o filho, seja biológica ou não, moldada pelo amor, dedicação e carinho constantes”. [i]
Cumpre salientar que, nesse sentido, deve-se tentar buscar, também, o desejo do filho. É claro que não deve ser negado  a ele a busca pelo pai biológico, o que muitas vezes se torna uma fixação para a criança ou adolescente que descobre não ser seu pai “verdadeiro” aquele indivíduo que sempre o tratou com carinho e dedicação, como se seu pai biológico fosse. Aqui, vale permitir aquilo que é o verdadeiro sentimento no coração o filho, qual seja, a vontade de conhecer aquele que o gerou. Porém, não se deve esquecer de demonstrar para esse filho que o que realmente tem relevância é o fato de que aquele homem, mesmo sabendo não ser seu pai biológico o tomou para si numa responsabilidade de “verdadeiro” pai.
Também não se pode negar, por outro lado, a possibilidade do pai socioafetivo de desconstituir a paternidade que reconheceu pensando ser seu filho biológico aquele que, de fato, não era. Nesse momento, entende-se até mesmo a revolta de alguém que foi reconhecer como seu um filho que era de outro, induzido a erro (art. 1604 do Código Civil).
Tendo sido expostos alguns aspectos que envolvem a questão central da paternidade socioafetiva, deve-se dizer que esta é apontada pela doutrina como a manifestação de três pilares básicos: nome, trato e fama. Esta é pois, a posse do estado de filho. O nome significa o fato de o filho socioafetivo usar o nome do pai, como se biológico fosse. A questão do trato diz respeito à forma com que o pai se dirige a esse filho, dando-lhe carinho, afeto, educação, responsabilidade e transmitindo-lhe valores; ou seja, é a exteriorização da paternidade. A fama, por sua vez, concerne ao fato de que, para a sociedade, em geral, aquele indivíduo se mostra, realmente, como um pai “verdadeiro”, que cumpre as funções paternas que se esperam dele, isto é, trata-se da notoriedade do estado de pai.
Logo, entende JOSÉ BERNARDO RAMOS BOEIRA:
“Entendemos que posse de estado de filho é uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai”. [ii]
                   Para ilustrar melhor a situação da paternidade socioafetiva, cita-se um exemplo envolvendo os três tipos de paternidade reconhecidos: suponha um casal que decida ter um filho mediante inseminação artificial, uma vez que o homem e estéril. Pois bem, eles se submetem a uma inseminação artificial heteróloga, aquela na qual há um doador de sêmen. Aqui, deve haver a anuência do marido para que ocorra tal procedimento, como consta do art. 159, V do Código Civil. Então, nasce o tão esperado filho e, anos depois, o casal decide se separar. A genitora, no desenrolar natural dos fatos se une a um novo companheiro que, devido à tenra idade da criança e ao afeto que sente por aquela mãe, assume, socioafetivamente a condição de pai. A partir daqui, vislumbram-se três distintas situações:
1)      Pai biológico: doador do sêmen
2)      Pai jurídico : ex-marido que anuiu para que acontecesse a inseminação artificial, de acordo com a lei, devido à presunção de filiação decorrente do casamento
3)      Pai socioafetivo: atual companheiro da genitora
                    Pois bem, tendo em mente tal situação muito comum de acontecer na prática, cabe a pergunta: qual paternidade prevalece? Aqui, o avanço científico esbarra nos conceitos estabelecidos ao longo dos anos relativamente ao assunto FAMÍLIA. Mas é claro que, nesse caso, o doador do sêmen, até mesmo por não ser identificado nos bancos de sêmen, quando da inseminação artificial, não assumirá papel relevante de fato, a não ser o da paternidade biológica, por mera situação do destino. Porém, na vida do filho que foi gerado ele não terá papel de destaque.
                  Já não se pode dizer o mesmo do pai socioafetivo, que entrará em confronto coma figura do pai jurídico. No entanto, analisando com detença, se chegará à conclusão de que o pai socioafetivo, de acordo com os lineamentos recentes apreendidos na vivência das relações familiares, é o que detém o papel do PAI em suas mãos, uma vez que, estando vivendo sob o mesmo teto com mãe e filho, terá mais proximidade com essa criança ou adolescente, o que fará com que este tenha em relação àquele a posse do estado de filho. Enquanto isso, o pai jurídico, devido ao laço que persiste, proverá seu filho, no mais das vezes, de necessidades materiais, a título de pensão alimentícia, devendo-se frisar que, em muitos casos, isso nem acontece.
                      Ademais, se o afeto venceu a falta de consangüinidade, não cabe à justiça desconstituir a paternidade socioafetiva que surgiu entre esse pai e esse filho.
                      O mesmo se pode depreender no caso de um casal de pais adotivos que, após anos de afeto destinado a uma criança, se vêem ameaçados de perderem tão amado filho em virtude do fato de que a mãe biológica deseja reaver o descendente que deu em adoção.
                      Relativamente a este assunto tem-se as seguintes jurisprudências:
 “EMENTA: APELAÇÃO. ADOÇÃO. Estando a criança no convívio do casal adotante há mais de 4 anos, já tendo com eles desenvolvido vínculos afetivos e sociais, é inconcebível retira-la da guarda daqueles que reconhece como pais, mormente, quando a mãe biológica demonstrou interesse em dá-la em adoção, depois se arrependendo. Evidenciado que o vínculo afetivo da menor, a esta altura da vida encontra-se bem definido na pessoa dos apelados, deve-se prestigiar, como reiteradamente temos decidido neste colegiado, a PATERNIDADE SOCIOAFETIVA, sobre a paternidade biológica, sempre que, no conflito entre ambas, assim apontar o superior interesse da criança. Negaram Provimento.[iii]
·     “APELAÇÃO CÍVEL. AÇÕES DE ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO E INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PRESCRIÇÃO. ADOÇÃO À BRASILEIRA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA.
1.      O prazo prescricional do art.18, § 9º, VI, do antigo CC, que vigia ao tempo do ajuizamento da ação anulatória do registro de nascimento, de há muito não mais vigorava, sendo imprescritível a      referida ação.
2.      ADOÇÃO À BRASILEIRA. Tendo o autor sido registrado como filho pelo pai registral, o qual sabia não ser o pai biológico, caracterizada a adoção à brasileira, que é irrevogável, descabendo a anulação do registro de nascimento.
3.      PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Plenamente caracterizada a paternidade socioafetiva entre o
autor e o pai registral, ela prevalece sobre a verdade biológica, o que impede não só a anulação do registro de nascimento, bem como a investigação da paternidade biológica. Preliminar rejeitada por maioria. Apelação provida para julgar improcedentes ambas as ações.[iv]
3) PATERNIDADE SOCIOAFETIVA E O DEVER DE ALIMENTAR
                        Consoante o artigo 1634 do Código Civil,
 “compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
I – dirigir-lhes a criação e educação;
                                               II – tê-los em sua companhia e guarda (...)”
                        Cotejando tal dispositivo com o artigo 1593 do CC (paternidade socioafetiva), cuja referência já foi feita, tem-se que, como o diploma legal não se posiciona explicitamente quanto ao tipo de parentesco a partir do qual pode-se pedir alimentos (art.1694), deve-se entender cabível que, o filho que mantenha com seu pai uma relação socioafetiva apenas, tem sim, o direito de se voltar a este e pedir que ele lhe conceda alimentos “de que necessite para viver de modo compatível com sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.”[v]
                        Considerando um caso de adoção à brasileira, fica ainda mais evidente o dever do pai socioafetivo em prestar alimentos aos filhos menores, uma vez que, vivendo com sua companheira, decidiu registrar os filhos dela em seu nome, assumindo de forma ainda mais incontestável, a
paternidade socioafetiva.
                        Valendo-se do teor do art. 1604 do Código Civil, tem-se que o pai socioafetivo que registra filho de outro como seu, não pode contestar tal registro, a não ser se provar que foi levado a erro, situação que não ocorreria no caso suposto acima.
                        Dessa forma, unindo os argumentos anteriormente explicados, conclui-se que é, não só viável, como também, imprescindível, se a criança necessitar, que o pai socioafetivo preste alimentos a seu favor, uma vez que, tendo  criado-a como filho,  agindo para com ela com amor, compreensão e sensibilidade de pai, não há justificativa para que, rompendo o vínculo com a companheira, deixe de assistir àquele que recebeu como filho.
                                               Para ilustrar tal entendimento, tem-se  a jurisprudência a seguir, que considerou o pai socioafetivo ter registrado o filho:
·        Ao reconhecer a paternidade, assumiu o pátrio poder e com ele todos os encargos decorrentes, como é o caso do pagamento de pensão alimentícia. A filiação foi constituída pelo próprio autor, e como a Constituição Federal não permite a discriminação de filho de qualquer natureza, art. 22, parágrafo 6º, o pagamento de pensão alimentícia é decorrência lógica ao reconhecimento da paternidade. Presentes estão os pressupostos da obrigação alimentar. A necessidade da menor é presumida e, por se tratar de alimentos naturais, o pai deve continuar com o pagamento de pensão alimentícia, conforme ele próprio já admitiu em acordo. Ante
o exposto, julgo improcedente o pedido para declarar a existência do vinculo de paternidade-filiação entre a ré e o autor, mantendo o nome de seu pai no registro de nascimento e ainda o nome de seus avós paternos. Homologo o acordo de alimentos para que o mesmo surta seus jurídicos e legais efeitos. Ressalvo a ré o direito de revogar o vínculo, na forma e no prazo legal, se assim o desejar, quando atingir a maioridade sob pena de ser um humano, menor de idade, ser atingido na sua dignidade, ao perder as suas raízes que estruturam a sua identidade de pessoa humana”.[vi]
4) UMA VISÃO PSICOLÓGICA DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA
                        Quando se fala em paternidade socioafetiva, fala-se, necessariamente de uma ocasião em que uma pessoa, que não o pai biológico,    assumiu a paternidade de alguém como se fosse seu verdadeiro pai. Dessa forma, sob o ponto de vista psicológico, surge a figura de uma pessoa que assumiu a FUNÇÃO PATERNA na vida de outra.
                        Deve-se entender o fato de que, para essa ciência, o PAI é menos um ser encarnado do que uma entidade essencialmente simbólica a ordenar uma função. Logo, não há uma correlação necessária entre a figura do genitor e o pai, haja vista que tal abordagem depende apenas de uma representação simbólica investida na referida função.
                        Diante disso, salienta-se que nenhum pai, na realidade, detém nem ao menos instituiu a função simbólica que representa. Ele aparece apenas como o seu vetor, distinção a qual instaura o desvio existente entre a paternidade e a filiação. Esta se desenvolve em níveis prioritariamente simbólicos, prevalecendo, pois, sobre a paternidade real. Daí advém mais um argumento a favor da paternidade consoante os moldes estabelecidos pelo crescente desenvolvimento
da sociedade – a paternidade socioafetiva.
                        Para a psicanálise, a FUNÇÃO PATERNA guarda um importante conteúdo, qual seja, o de instituir a noção de LEI no indivíduo. Assim, é o pai, ou aquele que assume o seu papel, que irá incutir na criança a idéia do limite, daquilo que é certo ou errado, do que deve ou não deve  ser feito. É através da figura do pai que se introjeta a lei psicanálitica (que se resume na proibição do incesto) e, conseqüentemente,  a lei jurídica.
                        Diz-se, por conseguinte, que se o indivíduo tiver uma formação fraca ou inexistente quanto à função paterna, ele desenvolverá sua personalidade em sentidos diversos, evoluindo para estruturas psíquicas que serão o reflexo da não introjeção da lei jurídica. Então, esse sujeito poderá não ter a noção de limite e da lei jurídica ( personalidade psicótica), poderá tê-la distorcida (personalidade perversa) ou poderá tê-la de forma incisiva, muito presente (personalidade neurótica).
                        Partindo dessa breve e sucinta explicação acerca de lineamentos psicológicos básicos, segue-se para a análise desses conhecimentos no que tange à paternidade socioafetiva.
                        Deve-se observar que, como já foi anteriormente referido, a FUNÇÃO PATERNA não precisa, necessariamente, ser assumida por um homem. Qualquer pessoa poderá se posicionar frente à criança como o detentor de tal função. Basta que, nessa qualidade, seja investida da tarefa de transmitir a essa criança a noção de limite, de lei, a qual levará para a captação da lei jurídica. Nesse sentido, torna-se extremamente importante mencionar que, consoante essa perspectiva, a paternidade socioafetiva ganha ainda mais viabilidade e reconhecimento, uma vez que, outra figura masculina, mesmo não sendo o pai verdadeiro, poderá assumir a função paterna perante o filho biológico de outro homem, devendo, para isso, despender atitudes de afeto, carinho e amor para com ele, preocupando-se, ainda, em exercer o papel investido na FUNÇÃO PATERNA.
                        Seguindo uma análise um pouco além da paternidade socioafetiva, embora ainda com grande ligação ao tema, cumpre observar que, tomando a família como referência, tem-se observado que nas populações de baixa renda, a viver nas periferias, com freqüência são encontrados casos de entidades familiares nas quais o genitor é ausente, seja por abandono do lar ou qualquer outro motivo, o que provoca o deslocamento na divisão clássica dos papéis, desde que se considere uma família tradicional, cujo pilar é a figura do pai. Nesses casos, a mãe é obrigada a ocupar, também, o papel do pai, por ser a única responsável pelos filhos. Há, assim, a carência de um pai simbólico a reger as leis frente a esses filhos.
                        Outra questão, suscitando, também, grande destaque nas varas de Família, diz respeito aos casais constituídos legalmente e estando, agora, em processo de separação. Aqui, os juízes igualmente são chamados a decidir acerca da paternidade e da organização familiar, devendo-se pautar pela lei, mas não somente por ela, procurando aliá-la à psicanálise, que aparece como ponto relevante na solução de conflitos dessa natureza.
                        Com as palavras de MARIA BERENICE DIAS:
“E, se Psicanálise é a análise do psiquismo, os operadores que trabalham com esse ramo do Direito - sejam advogados, promotores ou magistrados - não podem deixar de analisar esses conflitos atentos a um fato: são os restos do amor que são levados ao Judiciário, parafraseando Rodrigo da Cunha Pereira.
                                               (...)
Por isso, o Direito não pode se divorciar da Psicanálise. Quando ocorre a busca da justiça, cabe a todos que se envolvem na solução de tais demandas tentar visualizar toda essa realidade que subjaz ao conflito trazido a acertamento. Assim, é necessária uma maior sensibilidade para lidar com as nevrálgicas questões que atingem a própria estrutura do ser humano, pois dizem diretamente com os seus sentimentos.
            Indispensável que todos que trabalham com o Direito de Família, considerado o mais humano de todos os direitos, não busquem somente as regras jurídicas que serão aplicadas. São muito mais os regramentos comportamentais que auxiliam na hora de solver não só as seqüelas econômicas do fim do relacionamento, mas também suas conseqüências – em regra muito mais significativas -, que são os conflitos da alma. [vii]

5) OUTRAS QUESTÕES IMPORTANTES
                        No modelo familiar tradicional, homem e mulher se uniam em matrimônio a fim de, precipuamente, gerarem descendentes. Assim, cabia a cada um, dentro dessa perspectiva, um lugar estanque e fortemente delineado e designado por nomenclaturas típicas, tais como: marido, esposa  e irmãos. Daí advinham os parentes consangüíneos, marcados por denominações como tio (a), avô, primo (a), etc. Também pode-se destacar o parentesco civil, apresentado por nomes como sogro (a), cunhado (a), etc.
                        Com a evolução da sociedade, da luta da mulher por um lugar de maior destaque dentro do patriarcalismo e da engenharia genética, a paternidade unicamente biológica começou a ceder espaço para  paternidade marcada pelo vínculo exclusivamente afetivo.
                        Assim, a Constituição Federal, erigindo tal vínculo afetivo, nas diversas situações familiares, à proteção do Estado Brasileiro, trouxe à tona a transformação do que antes era chamadoconcubinato para o que hoje se tem como união estável. Passou a proteger, também, entidades familiares monoparentais.
                        Cumpre salientar que, as situações regidas basicamente pelo afeto, a partir da flexibilização da sociedade passaram a ser aceitas com menos rigorismo devido à sua existência fática incontestável. Porém, tais situações são consideradas, ainda, sob uma nomenclatura arcaica e carregada de negativismo, como é o caso de: companheiroconviventeamasiado e tantos mais, daí derivando o filho do companheiro, o filho do convivente, o filho do amasiado e etc.
                        O que se pretende a partir dessa idéia é a busca que deve ser travada na direção de se adotar, para as situações em que se tem o afeto como peça principal, uma postura decente, destinada a caracterizá-las, a começar pelos vocábulos que a designem, como casos tão importantes quanto as situações regidas pela tradicionalidade. Deve-se, pois, como medida que vise a coibir o preconceito, expurgar do uso expressões que transfiram consigo alta carga de negatividade e  desrespeito, entre outros.
                        Retomando a questão central proposta, não há como não falar de socioafetividade sem falar de homoafetividade. Insistindo na visão psicológica acerca do tema, tem-se a seguinte consideração: se a função paterna é essencialmente simbólica e pode ser exercida por qualquer pessoa, como argumentar contra a adoção por casais homossexuais? Será que cabe a afirmação de uma criança não pode ter dois pais ou duas mães? É óbvio que não. Mostra-se tal assertiva imbuída de um despropósito tamanho, tendo em visto o anteriormente exposto quanto à função paterna. A homoafetividade não pode ser empecilho para a adoção de crianças e/ou adolescentes, já que a função paterna é caracterizada pelo simbolismo e não pela encarnação de um pai real em sua estrutura.
6) CONCLUSÃO
                        Captando todos os argumentos e reflexões propostos nesse trabalho, vê-se que a paternidade socioafetiva surge, como conseqüência da evolução dos hábitos e pensamentos da sociedade, a partir do momento em que as pessoas começam a se desvincular das amarras de um pensamento tradicional e inflexível quanto à família e a aceitar e buscar o amor como aspecto imprescindível e preponderante na constituição das relações travadas entre os seres humanos.
                        A paternidade socioafetiva deve ser considerada, sim, como uma das novas manifestações familiares instituídas através do afeto, sem o qual nenhuma base familiar pode resistir. Também deve ter sua importância reconhecida tal como sempre aconteceu em relação à paternidade biológica ou jurídica, pois com estas modalidades ela não guarda maiores diferenças, a não ser no que se refere à sua origem.
                        Assim, não há como se negar que a paternidade constituída sob a forma socioafetiva é digna de reconhecimento jurídico e social, além do respeito e da transposição de preconceitos que só fazem por desconsiderar a forma mais sublime de alavancar sentimentos e relações humanas: o afeto.
                        Parafraseando MARIA BERENICE DIAS, o afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Por Larissa Toledo Costa

7) BIBLIOGRAFIA:
·        VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Direito de Família. 5. ed. São Paulo. Atlas,2005.
·        RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil. Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2004.
·        GARCIA, Célio. Psicologia Jurídica. Operadores do simbólico. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
·        DOR, Joël. O pai e sua função em psicanálise.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
·        BRASIL.  Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Sétima Câmara Cível
·        BOEIRA, José Bernardo Ramos. Investigação de Paternidade: posse de estado de filho: paternidade socioafetiva. 1999.
·        www.mariaberenicedias.com.br
·        www.jfreirecosta.com
·        www.ibdfam.or.br
·        www.jusnavigandi.com

Notas:
1 ALMEIDA, Maria Cristina de. Investigação de Paternidade e DNA: Aspectos Polêmicos. 2001.
2 BOEIRA, José Bernardo Ramos. Investigação de Paternidade: posse de estado de filho: paternidade socioafetiva. 1999, p. 60.
3  Apelação Cível nº 000190039. Sétima Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Des. Luiz Felipe Brasil Santos. Julgado em 02/05/2001. 
4 Apelação cível nº 00086568 – 8ª Câmara Cível - Giruá
5 Artigo 1694 do Código Civil.
61a Vara de Família e Sucessões da Comarca de Porto Alegre – processo n º 01295046435
7 DIAS, MARIA BERENICE. “ Direito e Psicanálise” – www.mariaberenicedias.com.br
(Texto elaborado em junho de 2005)
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