domingo, 8 de agosto de 2010

Sobre o direito de ser pai

A resolução de ter um filho nestes loucos dias em que vivemos não é fácil.

Não que outros tempos, menos confortáveis, democráticos e/ou violentos fossem evidentemente mais propícios à procriação humana, não. Deixamos para trás fantasmas como as altas taxas de mortalidade infantil, doenças infecto-contagiosas que dizimaram ou marcaram como inúteis gerações inteiras (a poliomielite como exemplo máximo), combatemos a exploração do trabalho infantil, aumentamos os níveis de escolaridade virtualmente em todo o mundo. (Não, é claro que não estou falando da África ou de nossas favelas).

Fomos agraciados com outros vilões, porém. A violência outrora típica das cidades grandes espalhando-se pelo interior, o vício das drogas - cada vez mais facilmente disponíveis para os adolescentes, as mortes no trânsito, os cartões de crédito que prometem uma felicidade consumista e espontânea com o único intuito de recrutar novos inadimplentes como prisioneiros da malha de exploração econômica do novo capitalismo, a destruição das famílias com a vulgarização do casamento e do divórcio.

Destes, considero os dois últimos os piores. Não que eu seja contra uniões estáveis pelo amor de Deus, se o fosse, não estaria vivendo com alguém que amo e respeito. Nem sou contrário ao estabelecimento do divórcio como solução para más escolhas. Muito menos a favor das famílias de mentirinha em que boa parte de nós fomos criados, mantidas a custo de manobras extraordinárias cuja intenção era tão somente garantir a sobrevida de casamentos fracassados até que os filhos fossem adultos.

Acredito sim que uma relação sólida e sadia entre dois humanos viventes, quando é do desejo de ambos que esta dure mais que uma "ficada" ou um namoro, possa ser o que de mais belo experimentaremos neste mundo de dificuldades financeiras, profissionais e psicológicas.

Acredito também, contudo, que nossa sociedade não está preparada, nem do ponto de vista micropolítico, nem do ponto de vista legal, a fornecer suporte adequado às famílias desfeitas. Vivemos ainda numa era patriarcal-matriarcal, em que ao pai cabe o sustento e à mãe, a criação dos filhos. Isto fica evidente quando se trata de disputas no âmbito judicial, uma vez que o Novo Código Civil não nos agraciou com as mudanças que se fazem necessário para atender a mulher moderna, o pai responsável e a atual família brasileira. A Guarda dos filhos continua sendo monoparental, da mesma forma que no antigo Código Civil (1916), hoje quase centenário.

Disso resultam problemas graves que atingem um número cada vez maior de crianças e principalmente progenitores do sexo masculino uma vez que, no Brasil, em 91% dos casos a guarda de filhos menores recai sobre a mãe. Como decisões favoráveis à guarda compartilhada são ainda raras em nosso sistema judiciário, estes pais vêem suas funções resumidas às de pai provedor e pai visitador, quebrando-se laços que deveriam ser protegidos por lei (entre a prole e o pai) e instaurando-se problemas variados de convivência entre as duas porções da família desfeita o mais grave deles a Síndrome de Alienação Parental.

Esta Síndrome, descrita por definida pela primeira vez em 1985 pelo professor doutor Richard A. Gardner, professor de Psiquiatria Infantil da Universidade da Columbia (EUA), é "o denegrir sistemático de um progenitor pelo outro, com o intuito de alienar a criança do convívio do primeiro".

Pais que sofrem este tipo de abuso experimentam sensações de perda, tendência à depressão e/ou agressão.

Filhos que sofrem privação de convívio com um dos progenitores são mais propensos a distúrbios psicológicos. A ligação entre a criança e o pai alienado estará irremediavelmente destruída e, com efeito, não poderá ser restabelecida sem que se passe um hiato de alguns anos. O pai alienado passa a ser um estranho para a criança, e seu modelo psicológico passa a ser o do outro progenitor, que detém a guarda e instaura o processo, por apresentar-se mal-adaptado à separação/divórcio e reagir a esta de forma disfuncional.

Uma conjunção de fatores (pai alienado do convívio mais modelo familiar incompleto e patológico) parece ser causa de inúmeros problemas psiquiátricos para a prole, como a depressão crônica, a incapacidade de “funcionar” dentro de um contexto psicossocial normal, problemas de construção da identidade, desespero, sentimentos incontroláveis de culpa, tendência à desorganização, sentimentos de isolamento, podendo chegar até ao desenvolvimento de neuroses específicas como a Síndrome de Ansiedade Generalizada e a Síndrome de Hiperatividade da Infância. Na juventude e idade adulta, há correlação estatisticamente significativa, nos (poucos) trabalhos existentes sobre o assunto, a uma maior propensão ao tabagismo, à drogadicção, ao alcoolismo, à criminalidade e a tendências suicidas.

A Síndrome de Alienação Parental pode e deve ser incluída como uma forma de abuso à infância. Seus efeitos não são somente temporários, mas podem acarretar problemas psicológicos, psiquiátricos e sociais pelo restante da vida do indivíduo.

Estados americanos como Califórnia, Texas e Pensilvânia já possuem jurisprudência sobre o assunto, cada vez mais discutido nos foros legal e científico. Já a União Européia vem discutindo desde 1992, quando um tribunal alemão recusou-se a permitir o direito de visitação de um pai a seu filho fora dos horários pré-estabelecidos, uma vez que o filho se recusava a vê-lo. O tribunal instruiu que estas visitas fossem realizadas somente com o acompanhamento da mãe e de um psicoterapeuta de sua escolha. Esgotados todas as possibilidades de apelação, e ainda impossibilitado de conviver com seu filho, este pai dirigiu-se à Corte Européia de Direitos Humanos demandando justiça e reparação contra a Justiça alemã. Ele invocou o Artigo 8 da Convenção dos Direitos Humanos que diz que "toda pessoa tem direito à sua vida (...) e família (...)" e que "a autoridade pública que exerce o direito previsto pela lei deve estabelecer medidas que, dentro de uma sociedade democrática, visem preservar a saúde ou a moral, ou a proteção dos direitos e liberdades dos outros(...)"  Neste caso, conhecido como "o caso Elsholz" a Corte Européia deu razão ao querelante e condenou o estado alemão a pagar 47600 marcos à título de reparação moral. Desde então, a Alemanha incluiu medidas preventivas e punitivas em relação à Síndrome de Alienação Parental em seu Código Civil.
Isto mostra que, independente das leis nacionais, o interesse superior da criança inclui o acesso fundamental ao convívio com seus dois pais.

Estudos multidisciplinares vêm estabelecendo subdivisões da Síndrome baseadas em características psicossociais das famílias e gravidade dos sintomas apresentados pela(s) criança(s) envolvida(s). O tratamento é multimodal e deve incluir dois braços principais: jurídico (responsável pelo atendimento legal ao progenitor alienado, pela indicação de um terapeuta único que trate em conjunto a ambos os ex-cônjuges e a prole) e médico-assistencial (que forneça o "feedback" necessário para a Corte instituir as medidas cabíveis quando necessário, que podem resultar até mesmo em troca da guarda nos casos mais graves).

É. A resolução de ter um filho nestes loucos dias em que vivemos não é fácil. A possibilidade de poder conviver com eles ao longo de sua própria vida, e ao longo da infância deles, está sendo severamente ameaçada neste país. Contamos com leis arcaicas, pouco ou nada alteradas com o advento do novo Código Civil, e com uma estrutura judiciária tão lenta quanto ideológica e cientificamente atrasada. A mesma Justiça que é ágil ao conceder mandados de prisão para pais inadimplentes com o sacrossanto direito filial à pensão alimentícia, pouco ou nada consegue fazer para assegurar aos cônjuges que não detém a guarda o direito de visitação, quando este lhes é usurpado.

A CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, editada pela Organização Mundial de saúde, órgão da ONU) deverá incluir a Síndrome de Alienação Parental em sua próxima versão, a de número 11. Como o Ministério da Saúde brasileiro a adota, esperemos que a existência do problema passe a ser melhor divulgada e estudada em nosso país.


Autor: Renato van Wilpe Bach é médico e escritor.
Fonte: Paraná Online
Share/Bookmark

Funções da pena no Direito Penal brasileiro

No ordenamento jurídico-penal brasileiro, nunca nosso legislador (até 1984) havia se posicionado (explicitamente) sobre as finalidades (ou funções) da pena. No âmbito dogmático (teórico), com certa tradição, (quase) sempre nossos doutrinadores mantiveram-se filiados às teorias ecléticas (ou mistas ou de união ou unitárias), que unificam as idéias de retribuição (ao mal do crime o mal da pena) e prevenção, tanto geral (ameaça a todos para que não venham a delinqüir) como especial (evitar que o criminoso volte a delinqüir).

Esse posicionamento doutrinário acabou tendo influência no Código Penal brasileiro vigente que parte − como não podia ser de outro modo − de um elementar retribucionismo, ao estabelecer como critério punitivo reitor do sistema a imposição da pena justa e merecida, isto é, da pena proporcional à gravidade objetiva do fato e à culpabilidade do seu autor.

Sem esquecer, desde logo, que a proporcionalidade da reação ao delito acomoda-se, também, às exigências preventivo-gerais (a pena mais eficaz é, precisamente, a pena proporcionada): justiça e proporção constituem os pilares de uma concepção retributiva.

De qualquer forma, não é válida a conclusão de que nosso Código siga o sistema retributivo puro. Admite-o como ponto de partida, mas não se orienta pelo retribucionismo inflexível (ou kantiano). O juiz conta com relativa maleabilidade no momento da fixação da pena (CP, art. 59) (embora flexibilidade ou discricionariedade não signifique arbitrariedade) e numerosas instituições desmentem as exigências lógicas derivadas das teorias absolutas ou retribucionistas. Isso significa, por conseguinte, que a resposta penal nem sempre pretende ajustar-se exclusivamente à gravidade objetiva do fato e à culpabilidade do seu autor.

A Constituição brasileira de 1988 não se posicionou expressamente sobre o tema. Mas como contemplou as vigas mestras de um modelo de Estado que se caracteriza por ser constituicional e democrático de Direito, não há dúvida que dos seus princípios, regras e valores (justiça, liberdade, segurança, dignidade da pessoa etc.) podemos inferir importantes limites à intervenção penal.

De modo algum, por exemplo, pode o autor de um crime ser tomado como "bode expiatório", como "paradigma" ("exemplo") para a sociedade, como meio para se alcançar a finalidade de prevenção geral.

O artigo 59 do Código assumiu expressamente um duplo sentido para a pena: retribuição e prevenção. Diz textualmente: "O juiz, atendendo à culpabilidade.. ., estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime: as penas aplicáveis dentre as cominadas.. .".

O artigo 1º da lei de execução penal, por sua vez, sublinha que "A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado ou do internado".

No momento da sentença, como se vê, a pena deve ser aplicada com o sentido retributivo e preventivo. No momento da execução, firmou-se a orientação primordial da integração social (prevenção especial). De qualquer modo, o sentido da pena em um determinado momento (da sentença) não se exclui quando ela passa para a fase seguinte (executiva).

Em nossa opinião, de tudo quanto foi exposto infere-se que, mutatis mutandis, é perfeitamente adequada ao ordenamento jurídico brasileiro a fórmula (tripartida) oferecida por Roxin (Derecho penal:PG, trad. de Luzón Peña et alii, Madrid: Civitas, 1997, p. 78 e ss.), com a conseguinte atribuição à pena de fins distintos segundo o momento ou fase de que se trate: [01]

(a) no momento da cominação legal abstrata a pena tem finalidade preventiva geral (seja negativa: intimidação; seja positiva: definição ou chamada de atenção para a relevância do bem jurídico protegido);

(b) na fase da aplicação judicial a pena tem finalidade preventiva geral (confirmação da seriedade da ameaça abstrata, assim como da importância do bem jurídico violado), repressiva (reprovação do mal do crime, fundada e limitada pela culpabilidade) e preventiva especial (atenuação do rigor repressivo para privilegiar institutos ressocializadores alternativos: penas substitutivas, sursis etc.) e

(c) na última etapa, na da execução, prepondera (formalmente) a finalidade de prevenção especial positiva (proporcionar condições para a ressocialização ou para a realização de uma processo de diálogo − Dotti −), porém, na prática, o que se cumpre é a função preventiva negativa da inocuização (mero enclausuramento, sem nenhum tipo de assistência ao recluso, sem a oferta das condições propícias à sua reinserção social).

A pena de prisão, na atualidade, longe está de cumprir sua missão (ou finalidade) ressocializadora. Aliás, não tem cumprido bem nem sequer a função inocuizadora (isolamento), visto que, com freqüência, há fugas no nosso sistema. A pena de prisão no nosso país hoje é cumprida de maneira totalmente inconstitucional (é desumana, cruel e torturante). Os presídios não aprensentam sequer condições mínimas para ressocializar alguém. Ao contrário, dessocializam, produzindo efeitos devastadores na personalidade da pessoa. Presídios superlotados, vida sub-humana etc. Essa é a realidade. Pouco ou nada é feito para se cumprir o disposto no art. 1º da LEP (implantação de condições propícias à integração social do preso).

O forte selo intimidatório, de outro lado, típico das concepções preventivo-gerais, traduz-se no desmedido rigor penal que as últimas reformas introduziram no nosso sitema. Exemplo paradigmático disso são as várias leis dos crimes hediondos (Lei 8.072/90, 8.930/94 e 9.695/98).

As reformas penais nos últimos anos, em suma, esquecendo-se do relativo equilíbrio estabelecido fundamentalmente nas alterações legaislativas de 1984 (ocasião em que foi modificado o Código Penal − Parete Geral − e a aprovada a Lei de Execução Penal) vem reforçando, por razões utilitárias e de oportunidade, o pensamento prevencionista (ora no sentido da prevenção especial − com a aprovação das penas restritivas, v.g. −, mas sobretudo no sentido da prevenção geral − constantes aumentos de pena e agravamento da execução, que se deram, por exemplo, com as várias leis dos crimes hediondos, que contam com enorme força apelativa e simbólica, como se a cominação abstrata fosse, por si só, solução para o grave problema da criminalidade no nosso país).



Nota

01Cf. ZUGALDÍA ESPINAR, J.M., Fundamentos de Derecho Penal, cit., p. 109 e ss. MIR PUIG, S., Derecho Penal, P.G., cit., p. 77 ss.

Sobre o autor: Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri. Mestre em Direito Penal pela USP. Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Co-coordenador dos cursos de pós-graduação da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

Sobre o texto: Texto inserido no Jus Navigandi nº1037 (4.5.2006)

Elaborado em 03.2006.

Informações bibliográficas:

Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:

GOMES, Luiz Flávio. Funções da pena no Direito Penal brasileiro . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1037, 4 maio 2006. Disponível em: . Acesso em: 08 ago. 2010.




Share/Bookmark
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...